Quando um livro com 84 anos nos faz revisitar o que pensávamos conhecer

Ler é uma das grandes paixões da minha vida que, desde muito cedo, aprendi a cultivar. Inclusive, recordo-me que, nos meus tempos de escola primária, era tão viciado em leitura que, à falta de outros livros, pegava num dicionário e começava a lê-lo. Embora não me consiga recordar se cheguei ou não ao fim da insípida trama do dicionário, o vício da leitura ficou enraizado e permaneceu até hoje como uma espécie de função biológica indispensável e inevitável. Por isso, comprar ou receber livros é sempre extremamente gratificante.

Ora, um dos últimos livros que recebi, simpaticamente oferecido pela família Brito, revelou-se uma verdadeira pérola, não só por se tratar de um livro com 84 anos (tendo eu uma adoração especial por livros antigos como aqui e aqui referi) e sendo parte de uma tiragem de 100 exemplares, mas também porque me permitiu revisitar com uma perspectiva completamente diferente alguns locais que visitei em França durante a minha viagem a solo em 2007.

Trata-se de um livro dedicado às cidades romanas do vale do Ródano nas quais inevitavelmente se incluem capítulos dedicados a Nimes e Orange, cidades que ainda hoje ostentam monumentos impressionantes da época romana, classificados pela UNESCO. É interessante comparar o estado de conservação dos monumentos em 1926, apresentados nas fotografias e ilustrações do livro, com o que encontrei em 2007.

O Arco de Triunfo, ou mais propriamente, o Arco Comemorativo consagrado a Tibério é uma verdadeira banda-desenhada dos feitos de armas da legião II que fundaram esta cidade embora muitos elementos tenham desaparecido com o tempo, especialmente com a adaptação do arco a atalaia durante a Idade Média. As diferenças entre 1926 e 2007 são pouco evidentes até porque o Arco foi completamente recuperado em... 1811, em plena época napoleónica.


É contudo na comparação com a sua configuração na Idade Média, em que foi adaptado a torre de vigia como já referi, que as diferenças saltam à vista. Este não foi um caso virgem em termos de adaptação pois existem vários outros casos de arcos romanos incorporados em fortificações. A reconstituição hipotética ajuda a dar uma ideia provável do que seria o seu aspecto original.

(clicar para ampliar)

Já o Teatro Romano de Orange é o melhor conservado da Europa, mantendo de pé o seu imponente muro de cena de 103 metros de comprimento por 37 de altura desde o século I d.C., descrito por Luís XIV como sendo "a mais bela muralha do Reino".

Tendo sido "preenchido" com habitações que entretanto foram demolidas a partir de 1825, o aspecto do teatro revelava em 1926 algum abandono em forte contraste com a actualidade.



Contudo, um dos aspectos mais interessantes do livro prende-se com a descrição dos monumentos da cidade de Arles, cidade que ainda não tive ocasião de visitar, especialmente com o seu imponente anfiteatro, um dos monumentos romanos melhor conservados no Mundo.

Inicialmente utilizados para jogos (combates, representações,...) que divertiam os 25.000 espectadores que se podiam sentar nas bancadas, após o advento do cristianismo e a decadência do Império Romano, o edifício foi readaptado a fortificação na Idade Média, tendo sido construídas torres de vigia em pontos diametralmente opostos. Este foi aliás um destino partilhado por estruturas semelhantes como o anfiteatro de Nimes e o Coliseu de Roma.

Mais tarde, a fortificação foi substituída por um aglomerado de habitações que persistiram até ao Séc XIX, altura em que a estrutura foi desimpedida.

Este livro é realmente uma pequena pérola que, para além de me ter feito ver com outros olhos algo que eu pensava conhecer, me deixou com água na boca em relação a Arles que, inevitavelmente, será uma paragem obrigatória na minha próxima passagem por aquela zona.

Virada a última página, não pude deixar de ficar a matutar. Poderiam imaginar os Srs Sautel e Imbert que, 84 anos depois, o seu livro seria capaz de ter este efeito num leitor a cerca de 2.000 km, a ponto de lhe dar destaque numa coisa chamada "Blog do Katano" que pode ser encontrada num local etéreo e anárquico chamado "Internet"?

Comentários