Os romanos passaram pela Gardunha

Texto publicado no Jornal do Fundão a 14 de Junho de 2018 

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Momento do levantamento do achado

Foi recentemente notícia aqui no Jornal do Fundão, a descoberta de um altar romano no limite da freguesia de Alcongosta durante uma actividade dos Caminheiros da Gardunha. Uma descoberta deste género é sempre um momento feliz, sendo que essa felicidade diz respeito tanto ao sentimento que a descoberta em si inspira em quem a faz, como à conjugação de circunstâncias que permitiram que esta acontecesse.

Este altar ou ara, como é mais comum designar-se, foi encontrado junto aos vestígios da via romana que ligam Alcongosta a Alpedrinha, num local onde as marcas de actividade humana denotam uma certa persistência ao longo do tempo. Trata-se de uma peça esculpida em granito de grão fino e o cuidado no seu acabamento contrasta com uma certa irregularidade nas letras da inscrição que exibe numa das faces. Facto curioso, trata-se da ara romana encontrada a maior altitude na região.

O local do seu achado traz mais interrogações que respostas. Desde logo, estará no seu local original ou foi para aqui trazida em época posterior? A ser verdadeira a primeira hipótese, existiria por perto alguma casa ou povoado? Onde? Também o contraste o acabamento da peça e a irregularidade das letras do seu texto parece indicar que esta terá sido adquirida num local diferente daquele em que foi acrescentado o texto. Sabe-se para já que a inscrição refere o nome de uma mulher e que se trata de um nome indígena, um nome “lusitano” se quisermos falar de forma mais simplista, o que mostra que a população local estaria então bem integrada nos costumes romanos. É provável que se trate de uma inscrição funerária, uma lápide mandada lavrar após a morte desta mulher, por alguém que a estimava e que assim quis perpetuar a sua memória. 

Era costume, na época romana, construírem-se monumentos funerários para assinalar o local de sepultura dos defuntos. Podiam ser em forma de altar, podendo ser o caso deste que agora foi encontrado, mas não só. A forma do suporte das inscrições podia variar, à media da própria dimensão e monumentalidade das sepulturas. Conhecem-se muitos exemplares de inscrições funerárias ao redor da Gardunha provenientes de Castelo Novo, Alpedrinha, Donas, Souto da Casa, Vale de Prazeres e até do Fundão, estando a maior parte delas no museu arqueológico da sede do concelho. 

Um dos exemplares mais conhecidos é o da lápide que se encontra encastrada no exterior da igreja de São Pedro, no Souto da Casa, e cuja importância e antiguidade passam despercebidas a quem por ali transita. Trata-se de uma lápide que se destinaria a ser colocada na fachada de um jazigo familiar e refere três elementos de uma família de ex-escravos: pai, mãe e filha.  

É claro que nem todas as inscrições romanas encontradas na região são funerárias. Muitas das aras encontradas nos últimos anos são votivas, ou seja, eram oferendas aos deuses, pertencessem eles ao panteão romano ou não, uma vez que após a conquista romana e apesar de as populações terem abraçado os costumes dos invasores latinos, as divindades indígenas continuaram ainda assim a ser veneradas. Muitas vezes até os próprios romanos aderiam a esse culto em paralelo ao seu.

Altar dedicado a Apolo que até ao último Verão se encontrava numa casa do Casal de Santa Maria, freguesia do Telhado (ver aqui)

As aras destinavam-se a retribuir ou solicitar uma dádiva aos deuses, por vezes até a mais que um ao mesmo tempo. A pedra e a inscrição que nela era gravada não eram mais que o materializar e eternizar desse pacto estabelecido entre o mundo terreno e o divino. Este comportamento tem eco ainda hoje no cristianismo, naquilo que se designa comumente por “promessas” e que é a expressão de um certo nível de politeísmo dentro do suposto monoteísmo desta religião. Vemos esse princípio aplicado quando um crente promete oferecer algo a um santo da sua escolha em troca de uma dádiva.

Depois de gravadas, as aras eram colocadas em local de culto. Muitas delas, têm até esculpida uma concavidade na sua parte superior, o fóculo, que era o local onde eram queimadas essências ou feitas libações aos deuses. Embora hoje as vejamos como blocos monocromáticos, teriam originalmente um aspecto bem diferente, com letras e decorações pintadas.



Reconstiuição hipotética e subjectiva do aspecto original da ara, apenas para dar uma ideia do tipo de cores e do quão diferente seria originalmente.


O mesmo princípio se aplica a estátuas e edifícios. Hoje vemo-los como construções de mármore, granito ou calcário apenas com a cor do material de que são feitos mas, na verdade, na sua época de construção eram bem diferntes, decorados com uma palete de cores fortes e chamativas.

Voltando à ara que é o mote deste artigo, há ainda um longo caminho a percorrer para responder a todas as perguntas que a sua descoberta coloca e é possível que nunca se venham a ter as respostas todas. Para já, o que se sabe é que, há cerca de 2.000 anos atrás e num acto destinado à eternidade, o nome de uma mulher foi gravado em pedra. Hoje, passado todo esse tempo e nada conhecendo dessa mulher a não ser o seu nome, cá estamos nós a ajudar a perpetuar a sua memória. 

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