Lendas da Gardunha

Texto publicado no Jornal do Fundão a 5 de Abril de 2018 

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Falar do património humano da Serra da Gardunha implica necessariamente falar não apenas daquilo que é material mas de igual forma do imaterial. Neste último, enquadra-se um rico manancial de lendas e crenças que nos chegaram, transmitidas essencialmente por via oral. 

Imbuídas de uma profunda religiosidade, que se traduzia em diversos aspectos do seu dia-a-dia, as gentes da Gardunha acreditavam também na existência de diversos seres fantásticos cujos nomes, de tão repetidos ao redor das fogueiras por inúmeras gerações, acabaram por ser percebidos como uma parte banal da realidade que as rodeava, algo tão banal como os fraguedos e as árvores das encostas ao redor. 

Assim, pelos caminhos da Serra, os mesmos caminhos que as gentes trilhavam para irem de uma aldeia para a outra, caminhavam também o Diabo, a Boa-Hora e a Má-Hora e até bruxas, embora estas vivessem até despercebidas no seio das comunidades. Os cruzamentos de caminhos eram locais muito sensíveis pois eram frequentemente locais de “mau encontro”, havendo muitas vezes necessidade de os santificar com a presença de um cruzeiro, fosse ele de pedra ou madeira. 

Em praticamente todos os relatos que pudemos recolher, O Diabo ou Patilhas, como era familiarmente conhecido, é em geral um “pobre Diabo”. A sua obsessão por almas torna-o uma vítima fácil e recorrente da esperteza alheia. Tendo inventado o moinho, vê Deus apropriar-se da sua invenção ao passo que sendo o construtor da calçada que liga o santuário da Senhora da Orada à Portela, também conhecida como Cruz (lá está, num cruzamento), fica sem a alma que lhe fora prometida em troca da obra. Logo ali ao lado, embora já noutra serra, é também vítima da malícia de um sapateiro quando se encontrava no centro de um baile de bruxas, em plena Eira dos Três Termos. Apenas por uma vez a sua aparição tem consequências nefastas, ao deixar sem fala uma habitante da aldeia abandonada de Porto dos Asnos.

A Boa-Hora e a Má-Hora, por sua vez, são duas entidades enigmáticas que vagueiam silenciosas pelos caminhos. A primeira é, segundo as descrições, “branca, muito alta, como se fosse toda feita de algodão” em oposição à segunda que é “um vulto negro”. Nas entrevistas que efectuámos, algumas pessoas afirmaram a pés juntos ter visto estas duas figuras e também é conhecida a história de como, na aldeia de Casal da Serra, um homem foi perseguido até sua casa pela Má-Hora, não se tendo atrevido a sair durante vários dias. A Boa-Hora, personificação de venturas, surge no caminho como o aviso para as pessoas se porem a salvo já que, atrás de si, vem sempre a Má-Hora, a personificação do infortúnio que pode até significar a morte.

À semelhança do que já se faz noutros locais, no nosso país e não só, este manancial de lendas justifica bem a criação de roteiros temáticos, cujo valor paisagístico seja complementado com a partilha deste elementos etnográficos imateriais. Há desde logo um elemento que facilita a tarefa e que é o facto de, de forma geral, todas estas lendas estarem perfeitamente localizadas na geografia da Gardunha. Acreditamos também que é fundamental trabalhar-se no sentido de salvaguardar este acervo. Isso não passa por simplesmente plasmar os relatos em textos mas antes por registar o seu relato na primeira pessoa pelas pessoas que as viveram e ainda vivem de forma íntima, nas diferentes aldeias da Gardunha. Ainda há tempo para tal.

Para terminar, vale a pena fazer referência a uma lenda que implica seres que, hoje sim, são seres imaginários: os lobos da Gardunha. Trata-se da lenda do Penedo da Abelha e que conta a trágica história de um jovem soldado que, tendo saído da casa dos seus pais para ir visitar a sua namorada, nunca mais regressou. Conta-se que dias mais tarde apenas os seus pés terão sido encontrados, ainda dentro das botas.

Ora, foi no próprio Penedo da Abelha que, em 2004, identificámos uma inscrição para a qual o estimado Dr. Candeias da Silva avançou gentilmente uma proposta de leitura e datação. Nesta inscrição dos séculos XVI ou XVII, alguém procurou eternizar junto a uma cruz, o nome Afonso Vaz. Será esta a prova material do local de falecimento de um jovem soldado? 

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