Caminho Inca - O segundo dia no Trilho

Etapa 2: de Llulluchapampa a Caquicocha
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Depois de um primeiro dia extremamente exigente, o percurso para o segundo dia, apesar de um pouco mais curto, não prometia menos dificuldades. Esperavam-nos duas subidas exigentes, começando logo pelo culminar da ascensão ao ponto mais alto de todo o trilho, passagens por sítios arqueológicos que pareciam saídos das páginas de um livro de aventuras e a entrada na floresta de nuvens, que fez verdadeiramente jus ao seu nome.

O dia começou cedo, por volta das 5h30 da manhã, com a oferta de chá e café tenda a tenda. Para além da simpatia do gesto, soube mesmo bem beber daquela chávena quentinha enquanto contemplávamos a vista para o vale que tínhamos subido no dia anterior, dominado pelo maciço nevado do Wayanay. Até deu para esquecer por minutos o frio intenso que ainda se fazia sentir.



O nascer do Sol com vista para o pico do Wayanay, com quase 5.500m de altitude (ver vídeo)


Depois de nos equiparmos e prepararmos as mochilas, reunimos-nos na tenda de refeições para um belo pequeno-almoço. A jornada prometia até porque, de acordo com o briefing do dia anterior, iríamos enfrentar duas subidas exigentes, descidas acentuadas e o resto seria plano, não de acordo com o nosso conceito de planura mas antes "inca flat", segundo os nossos guias, que faziam repetidos movimentos para cima e para baixo com a mão para ilustrar o conceito.

Com toda a gente pronta e o acampamento já a desaparecer para dentro das mochilas-saco da equipa Enigma, retomámos a caminhada para concluir a subida iniciada no dia anterior.



Uma caminheira, nitidamente motivada e envergando orgulhosamente um gorro de lã de alpaca, indica a primeira meta do dia: Abra Warmiwañusca ou a passagem da Mulher Morta, lá ao fundo.



A passagem da Mulher Morta
(ou o ponto mais alto a que alguma vez um Caetano subiu pelo seu próprio pé)

Embora inicialmente o facto de começarmos a subir tenha ajudado a contrariar o frio que se fazia sentir, com a chegada do Sol tudo mudou. Depressa tivemos de despir os casacos, gorros e luvas para podermos continuar, até porque também já não tínhamos a protecção da sombra das árvores.

Ao olhar para trás percebemos a grande quantidade de gente que percorria também o trilho. As linhas formadas pelos carregadores, vestidos de amarelo, verde, vermelho ou cinza, consoante a agência a que pertenciam, emprestavam um bonito colorida à paisagem e ajudavam-nos a identificar o trilho na paisagem.




O nome daquela passagem não evoca uma caminheira menos afortunada mas, dada a dificuldade da subida, não seria de admirar se assim fosse.


A subida foi-se complicando porque, para além da inclinação e dos degraus, o efeito do oxigénio rarefeito se fazia sentir mas, degrau a degrau, chegámos finalmente ao ponto mais alto da nossa caminhada: Abra Warmiwañusca, a passagem da Mulher Morta, a 4215m de altitude. Fiquem no entanto descansados porque o nome do local não se deve a uma caminheira mais infeliz mas sim ao facto de, quando visto ao longe, o local lembrar a forma de uma mulher deitada. 

Ao chegarmos, sentamos-nos a olhar para trás durante algum tempo, saboreando a sensação de triunfo de termos subido tanto, desde aquele local agora tão pequenino no fundo do vale. Depois, enquanto o resto do grupo não chegava, aproveitámos para subir um pouco mais para procurar uma geocache que por ali estava escondida (clicar aqui para saber o que é isto), o que nos deu uma perspectiva diferente da passagem. Podem ver neste vídeo: 


Vídeo - A passagem vista de cima.



Após terem terminado a subida, dois grupos de carregadores descansam antes de continuarem o caminho


À medida que os restantes elementos da equipa iam chegando, reagindo com maior ou menor efusividade ao final da subida (um sonoro e teatral "F### you, Dead Woman!!!" estabeleceu o padrão), iam sendo felicitados por aqueles que os esperavam. Já com toda a gente, foi tempo de tirar a inevitável fotografia de grupo para eternizar o momento. Foi então tempo de voltar a pôr as mochilas às costas para começar a descer para o próximo vale.



A melhor equipa composta por quatro cidadãos estado-unidenses, dois irlandeses, dois britânicos, uma canadiana e dois portugueses que alguma vez alcançou os 4215m de altitude no Trilho Inca.




A descida para o vale de Pacaymayo

À medida que começámos a descer para o vale do rio Pacaymayo, o nevoeiro cerrado começou a recuar à nossa frente até que a certa altura foi possível ver a totalidade do vale. Lá ao fundo avistava-se o acampamento onde iríamos almoçar enquanto que, na encosta da montanha, se distinguia claramente o serpentear do trilho. Foi uma descida tremenda, exigente para os joelhos, que nos levou a pensar em como terá sido difícil a vida dos mensageiros que tinham de correr por estes caminhos. 



O início da descida para o vale do Pacaymayo, um verdadeiro "rebenta-joelhos" mas que seria realmente uma chatice se tivesse de ser percorrido no sentido inverso.


À medida que nos aproximávamos do fundo do vale, íamos também tomando consciência da tarde complicada que nos esperava, dada a bela subida que se ia tornando cada vez mais nítida no flanco da montanha para lá do acampamento. Não admirou portanto que muitos aproveitassem a pausa após o almoço para dormir um pouco, já que iríamos mais uma vez precisar de todas as nossas energias.



O acampamento de Pacaymayo e, para lá dele, a subida para Runkurakay. Com algum esforço é possível avistar o Tambo, mais acima. Se não forem de grandes desafios, podem sempre clicar na fotografia para ampliar.




Momento de descontracção após o almoço, antes de enfrentarmos a subida íngreme da tarde.



Runkurakay e os Chasquis, os mensageiros do Império

A subida até à passagem de Runkurakai, o 2º ponto mais alto do trilho, foi tudo o que esperávamos dela: bastante exigente mas não tanto quanto a subida até à passagem de Warmiwañusca, embora também tivesse muitos degraus.

A meio da subida passámos pelo interessante conjunto de ruínas de Runkurakay, mais uma vez um Tambo, um local onde os mensageiros se revezavam. Mas quem eram afinal estes mensageiros, que tinham um papel fundamental no Império Inca? O nosso guia Toni deu-nos uma explicação interessante.



O Tambo de Runkurakay (do quechua "Runku"=cesto e "rakay"=ruína), onde os mensageiros ficavam alojados. Possui alguns socalcos de cultivo e oferece uma vista fantástica para a passagem da Mulher Morta e para o vale do Pacamayo


Os Chasquis eram uma classe à parte no Império. Considerados nobres, não tinham no entanto os mesmos privilégios tradicionais da nobreza propriamente dita. O cronista Inca Guamán Poma refere que, estando comprometidos com o seu trabalho todos os dias, durante todo o ano, não lhes era permitido ter esposas nem filhos.

Os mensageiros eram escolhidos através de uma prova anual de corrida, em que qualquer cidadão podia participar, sendo esta a única via que os mais pobres tinham para escaparem à miséria, já que o Inca garantia aos Chasquis comida, dormida e roupa. Como já mencionei, como os Incas não tinham sistema de escrita, as mensagens eram memorizadas pelos Chasquis. O único registo físico portátil de informação existente era o quipu, um sistema de cordéis e nós destinado a registos numéricos.

Quando lhes era transmitida uma mensagem, tinham de correr grandes distâncias, o que significava um esforço muito violento. Para contraria os efeitos desse esforço, mascavam folhas de coca que, misturada com uma cinza (de composição desconhecida), potenciava a resistência e imunidade à dor. Quando chegavam a um tambo, transmitiam a sua mensagem a um dos Chasqui que aí se encontravam que continuava a corrida, enquanto que o Chasqui acabado de chegar poderia aqui ficar a descansar, até chegar a sua vez de revezar o próximo mensageiro.

Saíndo do Tambo, o nosso guia Toni chamou-nos a atenção para algo importantíssimo: -"A partir daqui, o trilho é praticamente original. Nunca foi restaurado". De facto a diferença era notória. 

Retomámos a subida pela escadaria irregular e, pouco depois, chegámos à passagem de Runkurakay, o segundo ponto mais alto da caminhada a 3950m de altitude. Aí, vários montinhos de pedras enfeitavam o local. O seu significado é muito profundo e revelador do respeito que os actuais andinos, no contexto do sincretismo religioso herdado dos tempos da colonização, têm pelos deuses da montanha, pois trata-se de oferendas simbólicas, pedindo bênção e passagem segura.  




Subida para a passagem de Runkurakay, o 2º ponto mais alto da nossa caminhada. As escadas precisam de alguma manutenção mas estão apesar de tudo num admirável estado de conservação. É o que distingue as construções dos Incas das construções dos Inca-pazes, referência popular às reconstruções de fraca qualidade.




Algumas pedras amontadas sobre um altar. Estas pedras eram oferendas rituais às montanhas, adoradas como divindades. Os caminheiros tinham de trazer uma pedra consigo desde a base da montanha para aqui deixar, aquando da sua passagem.





Saída do túnel Inca após a passagem de Runkurakay. Esperava-nos um intenso nevoeiro.


A caminhada continuou com a passagem por um túnel, escavado por aproveitamento de uma falha natural da rocha durante a construção da estrada. À saída deste, revelou-se outro vale nublado, no qual era possível verificar o regresso da floresta, agora ainda mais densa. Estávamos a entrar no domínio da "floresta das nuvens", a floresta que se desenvolve em altitudes elevadas com muita humidade. Fomos descendo sem grande visibilidade até que, de repente, uma abertura do nevoeiro revelou-nos as espectaculares ruínas de Sayaqmarca, a nossa próxima paragem.



Sayaqmarca, um prodígio de engenharia

Embora ainda se discuta o propósito deste local, a teoria mais aceite aponta Sayaqmarca como um importante santuário no caminho para a cidade sagrada de Machu Picchu, onde os viajantes podiam parar para prestar homenagem às divindades e descansar. Acessível apenas por uma estreita escadaria, junto ao precipício, este local faz jus ao seu nome de "local (ou povoação) inacessível" e terá sido construído na primeira metade do século XV. 

Já agora, ainda não o tinha referido nos artigos anteriores mas a esmagadora maioria dos locais arqueológicos incas (senão mesmo todos) foram baptizados muito recentemente. Não havendo sistema de escrita para registar a sua memória e tendo sido sujeitos à devastação e política de reescrita da História pelos invasores espanhóis, o nome original dos locais perdeu-se. À medida que iam sendo redescobertos, os exploradores e investigadores iam-nos baptizando, de forma politicamente correcta, com nomes em língua nativa quechua, incluindo Machu Picchu. 




Sayaqmarca (do quechua "Sayaq"=inacessível" + "marca"=local, povoação") numa localização que faz jus ao seu nome. Passar por aquela escadaria de acesso foi um verdadeiro desafio. Mais abaixo vê-se a continuação do trilho, por onde iríamos passar.


Sayaqmarca é um prodígio de engenharia. Na encosta, os socalcos não se destinavam apenas à agricultura pois também serviam para garantir a estabilidade das casas e templos da parte superior. Quanto ao fornecimento de água, este era assegurado por um aqueducto que trazia a água desde uma nascente, na zona mais alta da montanha, através de canalização subterrânea (uma constante na engenharia Inca, segundo dizem para evitar envenenamento da água). A água entrava em Sayaqmarca pela parte mais alta, circulando em seguida por todo o complexo até terminar nos banhos cerimoniais da zona mais baixa. Na zona mais alta, situava-se o templo mais importante de Sayaqmarca, possivelmente dedicado ao Sol. 

O único senão da visita foi mesmo o nevoeiro que nos impediu de ver a vista que deve ser impressionante.





Entre os vários muros, um elemento destaca-se em primeiro plano. Trata-se do equivalente Inca das nossas bolhas de nível, utilizado para assegurar a horizontalidade das construções.


De Sayaqmarca conseguimos ainda assim avistar outro local arqueológico pelo qual iríamos pouco depois passar: tratava-se de Conchamarka, outro Tambo já em plena floresta. É difícil descrever a beleza do local à qual as fotos não fazem a mínima justiça. Recordo-me sobretudo do assombro que tomou conta de nós e que nos fez caminhar bem devagar por aquela calçada.


Conchamarka (do quechua "panela"), mais um Tambo na estrada Inca para Machu Picchu.



Passagem por Conchamarka. Simplesmente fantástico!


Pouco depois de Conchamarka, chegámos ao acampamento de Chaquicocha, onde iríamos passar a noite. Este acampamento estava bastante concorrido, ao contrário dos anteriores mas, fruto da corrida generosa dos nossos carregadores, iríamos ficar num local mais sossegado.

Depois de mais um excelente jantar, mais uma vez o sentido de humor de Toni foi protagonista, sobretudo quando teceu algumas considerações pouco abonatórias sobre chilenos. Um ressentimento que, segundo diz, teve origem numa guerra travada entre peruanos e chilenos, que os primeiros quase venceram, acabando no entanto por "ficar em segundo lugar".

Com o cansaço a fazer-se finalmente sentir, foi tempo de ir dormir para atacar no dia seguinte a mais bela secção do Caminho Inca.



O acampamento de Chaquicocha, imerso em nevoeiro a 3500m de altitude.

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A seguir:

Flores, ruínas e vertigens!

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