Pelos trilhos dos Pirinéus - I

Dois anos depois, voltámos aos Pirinéus para uma breve mas proveitosa estadia, passada a percorrer trilhos belíssimos ofuscados aqui e ali pela brancura da neve, a provar a gastronomia local e ainda a descer às entranhas negras das montanhas para admirar obras de arte com dezenas de milhares de anos.

A viagem até ao vale de Vicdessos (talvez uma das regiões menos conhecidas dos Pirinéus e, por isso mesmo, pouco concorrida), foi feita de carro em absoluta tranquilidade. Como sempre acontece, detivemo-nos na histórica localidade de Tordesilhas, onde Portugal e Espanha tiveram a ousadia de dividir o Mundo (ler aqui) para um café na agradável Plaza Mayor.


Vista parcial de Tordesilhas, com as Casas do Tratado em destaque (ler aqui)


La Plaza Mayor!

Com uma hora perdida na linha invisível que separa Vilar Formoso e Fuentes de Oñoro e com a viagem feita em ritmo calmo, chegámos a Vicdessos já perto das 21h, a tempo de um belo jantar de reencontro com algumas caras que a saudade não deixara esquecer. O primeiro passeio, para desentorpecer as pernas, ficaria para o dia seguinte, após uma manhã de sono para recuperar do car lag.

Se por um lado o tempo estava excelente, por outro a neve que se via nos montes mais altos à volta liquidava à partida as intenções de fazer caminhadas em altitudes maiores, agravado ainda pelo risco de avalanches (vimos os vestígios de algumas ao longe), como a que tínhamos planeado no trilho do Caminho da Liberdade, até aos destroços de um bombardeiro Hallifax III inglês da II Guerra Mundial. Paciência!



Vista de Vicdessos e, à direita, da parede quase vertical do Pico do Risoul



Rua Principal de Vicdessos, guardada pelo Risoul. Nesta parede vertical existe um percurso-aventura, uma Via Ferrata onde, segundo nos disseram, já foi necessário ir buscar alguns aventureiros psicologicamente menos bem preparados com um helicóptero.


Ao lado de Vicdessos, na localidade de Auzat, a memória da indústria do alumínio ainda está bem viva num percurso de memória implementado no local. Vale a pena recordar a história aqui.



Pormenor de um telhado tradicional de pequenas telhas planas de lousa

Finalmente chegou o dia de fazer uma caminhada mais a sério, tendo o percurso escolhido sido o da "Soulane de Vicdessos", a vertente Sul do vale que tem normalmente uma exposição solar 8 vezes superior à da vertente Norte, com os devidos reflexos no povoamento e na vegetação. O percurso começou ao longo do pequeno rio que tem o nome da povoação de Vicdessos, antes de iniciar a subida para os 1.000 metros, cota ao longo da qual se dispõem na encosta 4 aldeias: Illier, Orus, Sentenac e Suc.

O percurso pela vertente Sul do vale, num total de cerca de 16km.



Momento de pose junto ao Vicdessos.

Restos de uma ponte após a aldeia de Arconac. Resultado da guerra, da velhice ou de uma cheia?


A subida até à aldeia de Illier fez-se por um trilho com calçada muito rudimentar, numa floresta que, como é regra nesta altura do ano, é atravessada por vários cursos de água resultantes do degelo nas montanhas. Após algumas subidas mais puxadas, chegámos finalmente à pequena aldeia de Illier, organizada no flanco da montanha, à volta de uma rua irregular.

Início da subida. O trilho 




Vista parcial (mas quase total!) de Illier onde avistámos um único indivíduo que, a julgar pelas bagagens, estava apenas de passagem.

Retemperados pela água fresca da fonte que encontrámos em Illier, seguimos pelo trilho de uma Grande Rota em direcção a Orus. Este troço em particular é tradicionalmente conhecido como o Caminho dos Nobis (Noivos). Devido à rivalidade entre povoações, quando alguém de uma aldeia se casava com alguém da outra, gerava-se uma situação algo delicada pois a escolha do local da cerimónia era sempre motivo de acesa discussão e, por vezes, de confronto físico. Assim sendo, determinou-se que os noivos se passassem a casar no caminho entre Orus e Illier, junto a uma cruz que ainda ali se encontra. Pelo que verificámos, a população de Orus conseguiu ainda assim puxar a brasa à sua sardinha, já que a cruz se encontra muito mais perto desta aldeia do que da aldeia rival

Curiosa coincidência: neste altar encontrámos um recipiente de um jogo semelhante ao Geocaching: as "cistes". Neste jogo usam-se pistas e não coordenadas GPS como no primeiro.



A cruz junto à qual, segundo reza a tradição, se realizavam os casamentos entre pessoas que não eram da mesma aldeia. 



Mais perto de Orus, encontra-se um enorme moinho abandonado mas que dá mostras de ter sido usado ainda durante o último século.


Uma inscrição na fachada principal, feita por alguém que fazia um uso algo original da escrita, que denuncia a idade do moinho: 173 anos.



Ao longe, a Ponta de Prata (2654m) destaca-se na paisagem. À direita, coberto de neve, encontra-se a passagem que percorri há dois anos para chegar a Bassies (recordar aqui).


Finalmente chegámos a Orus. Aparentemente, existe aqui um pequeno estabelecimento comercial mas, sendo Segunda-feira, estava encerrado. Cruzámo-nos aqui com alguns habitantes bastante simpáticos e, o que surpreendeu mais, foi mesmo o facto de se encontrarem várias portas e janelas escancaradas, denotando um sentimento pouco comum de segurança. Reabastecidos os cantis, continuámos em frente, deixando Orus para trás.

A praça principal da aldeia permite o estacionamento de até 4 automóveis, tem um telheiro "multifunções" sob o qual se abrigam um banco, uma caixa de correio e um telefone público sobre o qual se encontravam duas listas telefónicas.


Chegada a Orus

O centro nevrálgico de comunicações da aldeia!



... e a aldeia já lá para trás.

O percurso após Orus faz-se por uma encosta sem vegetação e que oferece uma vista privilegiada para a confluência de vales em Auzat. É também um desafio para quem tiver problemas com alturas pois fica a sensação que, com uma escorregadela, se apanha um atalho rápido para o fundo do vale! 

"Faz de conta que isto é um caminho como outro qualquer..."


Mais à frente chega-se a Sentenac, uma aldeia um pouco maior que as anteriores, na qual se cruzam alguns trilhos, sendo que o nosso percurso nos levou a atravessar toda a povoação.




Vista geral de Sentenac.


Trilhos à escolha!


Uma fonte tão rudimentar quanto fresquinha que encheu os cantis.

O curto percurso até à aldeia seguinte, Suc, foi feito por estrada de alcatrão e, não sendo propriamente um percurso interessante, serviu para mostrar que, à semelhança do que acontece em Portugal na época dos míscaros amarelos, por esta altura do ano são muitos os carros estacionados à beira da estrada que denunciam a "febre" das Morchellas esculentas, os cogumelos aqui conhecidos como "morilles".

Já a aldeia é bastante maior e mais animada que as anteriores. Entre muitas árvores, está rodeada de cerejeiras bravas, que pintam a paisagem de branco, fazendo concorrência à neve das cotas mais altas.

Vista geral de Suc.

Um dos cantinhos da aldeia. Os lírios foram uma visão frequente não só aqui mas como em todo o percurso.

Em Suc, parece haver tendência para meter atrás das grades aqueles que maltratam animais, mesmo que se trate de São Jorge, um santo tão popular na vizinha Catalunha (daí o Sant Jordi) que lhe é dedicado um feriado.

Após um pequeno circuito, regressámos a Sentenac, iniciando a descida de regresso ao ponto de partida. Este troço iria valer-nos algumas surpresas muito agradáveis, começando pela pequena igreja românica junto ao cemitério, bordejando o trilho.

A pequena igreja românica nas descida para Vicdessos.

Um pouco mais à frente, uma olhadela fortuita descobre um pequeno ponto amarelo claro no meio da vegetação. Um dos tão procurados "morilles"!! Antes que alguém pudesse dizer "O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia, quando este estava distraído a comer morilles", já o cogumelo estava apanhado. Olhando em volta, logo surgiram mais três. Juntamente com alguns outros que os nossos anfitriões tinham entretanto apanhado, iriam servir para um delicioso jantar!


Ao ataque! 



Missão cumprida!


Estes cogumelos têm como características distintas o seu chapéu cheio de alvéolos e ainda o facto de serem completamente ocos, tanto na zona do chapéu como do pé. Outro pormenor de grande importância é o facto de só poderem ser consumidos depois de cozinhados uma vez que, quando crus, contêm hemolisina, uma substância que destrói os glóbulos vermelhos! Garanto-vos no entanto que são dos melhores cogumelos que já comi.

Regressando triunfantes a Vicdessos, encontrámos logo à entrada da povoação um graffitti que expressa a singularidade cultural da região, por vezes integrando um certo sentimento residual de auto-determinação. Trata-se de uma alusão à "Língua de Oc" ou Occitano, uma língua muito semelhante ao catalão falada no Sul de França, a "Occitania" como muitos defendem. 

É falada actualmente apenas por menos de 2% da população francesa e chegou a estar em vias de desaparecimento, embora nos últimos tempos se estejam a levar a cabo algumas medidas, tímidas é certo, de preservação. É por isso que hoje em dia ainda há quem diga que "aici se parla occitan, la lenga nostra !".



Continua

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