Sobral de S. Miguel (Covilhã)
Uma Serra com histórias para contar
Atiçada a nossa curiosidade por um pequeno artigo no Jornal do Fundão que alertava para o abandono a que nessa localidade estava votado o local das "Minas dos Mouros", deslocámo-nos a Sobral de São Miguel. Guiados por António Marques, embarcámos numa viagem até aos tempos em que os salteadores assolavam a região e onde ainda ecoam as detonações das lutas liberais.
Em Sobral de São Miguel, existe alguém para quem a história e a cultura da localidade merecem a dedicação de uma vida. António Marques, um habitante desta localidade que diariamente cuida das suas cabeças de gado e das suas terras, escreve livros onde conta as histórias que recolheu ou que lhe foram transmitidas pelos seus pais e avós. Ocasionalmente, escreve artigos para o Jornal do Fundão onde relata o que vai acontecendo na sua localidade. Foi precisamente um desses artigos que nos levou ao seu encontro. Nele relatava a sua preocupação e mágoa por nenhuma entidade ou personalidade se interessar pelo sítio das "Minas dos Mouros" estando este local em vias de desaparecer.
Após o nosso encontro num café da localidade, tendo tido conhecimento do que nos tinha levado até ali, António Marques não consegue conter um sorriso próprio de quem sente a satisfação de saber que alguém ouviu o seu apelo. Prontamente acedeu a levar-nos até ao local, não sem antes nos ter contado um pouco da história de Sobral de S.Miguel, um pouco de si e do livro que está a escrever.
A Rota do Sal
Sobral de S.Miguel foi em tempos uma terra de grande importância económica. Por aqui passava a Rota do Sal que, do litoral, levava o tão precioso "ouro branco" para as terras do Interior. Aqui, onde existiam algumas Catraias, a rota dividia-se seguindo um ramo para Este e Sudeste passando por Covilhã e indo até Monsanto e outro para Nordeste. Esta rota só terminou quando o caminho de ferro adquiriu protagonismo como meio principal de comunicação com os centros de produção.
-"Ali em cima ainda se notam os sulcos das rodas dos carros (de bois) que transportavam o sal" - Diz-nos António Marques.
As Minas dos Mouros
Partindo então em direcção às "Minas dos Mouros", somos surpreendidos por uma paisagem impressionante que tem como pano de fundo a majestosa Serra do Açor. À medida que o vale se vai estreitando enquanto a estrada vai subindo na direcção de um monte sobranceiro a Sobral de S.Miguel, vemos aqui e ali umas manchas onde nem sequer vegetação rasteira existe. Os incêndios devastaram a floresta, e a vegetação restante foi impotente para travar a erosão. "A serra tem estas feridas. Já pensei em escrever para o jornal a falar nisto também" - lamenta-se António Marques.
Finalmente, entramos por um caminho de terra batida, onde somos obrigados a abandonar o veículo para fazer o resto do trajecto a pé. Poucos minutos depois, António Marques aponta para uma abertura na rocha camuflada pelos arbustos "É aqui a primeira. Ali mais à frente está a maior." - Diz-nos. Diante de nós, rasga-se uma comprida vala que na sua profundidade máxima deverá ter cerca de 4 a 5 metros. Inconfundivelmente escavado por mãos humanas, a época em que foi feita escapa-nos. "Toda a vida ouvi chamar-lhe Minas dos Mouros. Já os meus avós assim lhe chamavam e toda a vida lhe tinham ouvido chamar isso." - confessa-nos António Marques.
Descendo pela abertura, somos confrontados com um triste espectáculo: o único interesse que este local despertou foi em infelizes oportunistas que aqui viram uma oportunidade para se livrarem de trastes e lixo diverso. Para lá deste atentado, a galeria estende-se um pouco mais e afunda-se no solo, estando no entanto entulhada. O propósito das "Minas dos Mouros", tal como a sua idade, jaz sob a terra à espera que alguém a queira descobrir.
Salteadores e lutas liberais
Imersos na paisagem que nos envolve, contemplamos a Oeste a Serra do Açor, a Este o maciço central da Estrela e a Sul as marcas que as Minas da Panasqueira deixaram na paisagem envolvente. Apontando para a Serra do Açor, António Marques conta-nos histórias em que a Serra era um santuário para os que fugiam dos bandos de salteadores que atormentavam a população: os Cacarras e os Brandões.
"Quando alguém se apercebia da vinda dos salteadores, dava o alarme e toda a população escondia o que não podia levar e fugia para a Serra com o que podia levar, até animais. Uma vez, estando os salteadores em Sobral de S.Miguel, um dos galos que alguém tinha levado consigo para o esconderijo na Serra cantou. O dono, sem pensar, com as próprias mãos lhe torceu o pescoço." - conta-nos António Marques, continuando: "Isto era no tempo em que os que eram por D.Miguel lutavam contra os de D.Pedro. Ora chegando certa vez os salteadores a Sobral de S.Miguel, apenas encontraram uma velha que por não poder, não tinha fugido com o resto. Os salteadores querendo saber por que partido estava ela perguntaram-lhe "Viva quem?" ao que ela respondeu "Viva os que cá estão e El-Rei de Bragança. Vão todos para o raio que vos parta então, que não entendo nada dessa dança"".
Abordando as lutas liberais, conta-nos sobre um combate que aconteceu no alto da Serra do Açor. As forças realistas carregaram sobre os liberais que se tinham entricheirado no cume da Serra. Sobre estes fizeram tal descarga de artilharia que estes para não serem exterminados, tiveram de fugir
A Casa de Bragança em Sobral de S.Miguel
Sobral de S.Miguel era um local ao qual os reis da Casa de Bragança se deslocavam muitas vezes para fazer caçadas. Segundo António Marques "Os reis vinham cá e por aí deixaram semente. Andava aí muita gente parecida com os reis.". A uma familiar sua, recorda com um sorriso trocista, chamavam-lhe Maria Pia por ser parecida com a Rainha D. Maria I.
Emanuel João
Convidando-nos para entrar em sua casa, António Marques revela-nos outra faceta sua: a de escritor. Com o pseudónimo de Emanuel João, está actualmente a escrever um livro onde aprofunda os episódios que nos contou. O mais interessante desse livro, do qual tivémos o privilégio de ler já algumas passagens, reside no facto de contar o dia-a-dia dos habitantes de Sobral de S.Miguel do antigamente, tudo isto escrito em português de sotaque saloio. Um pormenor que nos faz sentir imersos no quotidiano de então.
No entanto, a edição deste livro ainda sem título, poderá não acontecer. António Marques lamenta o facto de se encontrar sozinho nesta luta "É difícil arranjar apoios. Eu sozinho não consigo pagar a impressão do livro e também não consigo arranjar quem me apoie. Nem os meus filhos me querem ajudar, não se interessam pelo que faço" - diz-nos não escondendo a sua mágoa.
Já o seu livro anterior intitulado "Deus, a verdade e a vida ou libertação da humanidade", conheceu sérios problemas para ser editado. "Consegui obter do Sr Carlos Pinto (presidente da Câmara Municipal da Covilhã) um apoio de 100 contos. Mas tive de insistir muito para o obter depois de prometido.". Neste livro, o autor reúne alguns pensamentos e reflecte sobre Deus, a relação dos homens com Deus e analisa o Mundo moderno à luz destes temas com a clareza de uma pessoa simples e franca.
Paradigmático da sua personalidade é o último parágrafo do seu livro:
"Escrevo este livro, sem qualquer intenção monetária ou comercial.
Se sou feliz com o pouco que tenho, para quê quero eu mais?
Olhai leitores amigos:
O que é preciso, é aproveitar o dom da vida tão lindo, que a natureza nos ofereceu.
Não quero ficar na história, como herói, profeta ou arrastar multidões, que isso de nada me aproveita, nesta ligeira passagem.
O que eu mais desejo era ver a libertação da humanidade!
O que é possível com o auxílio de todos os homens de boa vontade!
Que Deus me oiça!..."
07/01/2000"
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