As gravuras rupestres do Zêzere, na Barroca

Já lá vão uns anitos desde que pela última vez andei à beira do Zêzere durante a noite. Na altura, numa noite escura como breu e onde, ao cruzar o pontão, só se adivinhava o rio furioso sob os nossos pés, os meus companheiros foram o Xamane e a Bandinha (abro aqui um parêntesis para referir que o Xamane tem um bonsai que é uma categoria!). Na aventura nocturna de hoje, coube à Ana ir comigo à descoberta das gravuras num passeio de quase 2h à luz da lanterna, por entre seixos e pinhal.

Nesta altura do ano, estar junto ao Poço do Caldeirão é uma verdadeira benção para o espírito. Sob a luz de um luar, que ficou como recordação do mês de Agosto, apenas se ouviam os grilos e, ao longe, os mochos. A água estava calma, como se o próprio rio dormisse embalado por estes sons e, aqui e ali, conseguiam ouvir-se os peixes saltando à superfície. Noite fantástica, portanto.

O primeiro conjunto de gravuras compreende dois painéis rochosos diferentes, um deles com cavalos, todos eles incompletos, e outro com cabras afrontadas (frente-a-frente). Se as representações dos cavalos deverão ter cerca de 15.000 anos, já as representações das cabras deverão ter entre 18.000 a 20.000 anos. Todas estas gravuras foram obtidas por picotagem e são na sua técnica e nos motivos representados, semelhantes à arte de Foz Côa e Siega Verde.


Painel 1 - Representação de cavalos. Impressiona a perfeição do cavalo mais completo no qual se distingue a crina, as orelhas viradas para a frente, o olho e os pormenores do focinho.


Painel 1 - Representação de cavalo mais tosca que a anterior. Distingue-se no entanto a orelha e a crina tal como algum pormenor no focinho.



Painel 2 - O maior caprídeo deste painel. Sem grandes pormenores, o que salta à vista é a forma como o formato da rocha foi aproveitado pelo autor das gravuras para dar tridimensionalidade ao animal. O quadril e o dorso fundem-se com o limite superior da rocha. Infelizmente, como eu já tinha aqui referido, alguém se lembrou recentemente de acrescentar um círculo sob o ventre da figura. Assim se realizam algumas alminhas sem outros estímulos na vida...



Painel 2 - Frente à cabra anterior, uma de menores dimensões e de traço mais fino foi acrescentada na parte superior da rocha, também ela aproveitando a forma da rocha para conferir tridimensionalidade. Fica apenas a dúvida se a intenção terá sido representar dois animais em confrontação, sem respeito pela escala, ou se o pretendido terá sido dar profundidade à cena, com um animal em primeiro plano e outro em segundo plano.


Voltando à margem esquerda do Zêzere, fomos ao encontro de uma rocha de grandes dimensões onde se encontra uma outra gravura, da qual uma delegação do Blog do Katano formada pelo Bruno, pela Nelly e por mim, teve conhecimento recente durante uma visita diurna . Trata-se de um cavalo mais minimalista que os anteriores e de picotado menos profundo (parece mais próximo dos caprídeos anteriores do que dos cavalos).


Representação de um cavalo onde se distingue imediatamente o ventre e os membros anteriores e posteriores. O pescoço, a cabeça e o dorso estão representados com um picotado menos profundo e o desenho não apresenta muitos pormenores.



Um apontamento curioso. Se à partida poderiam parecer "covinhas", representações muito familiares em arte rupestre, estas cavidades são no entanto mais largas e profundas e referem-se a tempos muito mais recentes. Na verdade, durante o período do Estado Novo, toda esta região desenvolveu um mercado paralelo de volfrâmio, extraído clandestinamente das encostas circundantes, com especial incidência no Cabeço do Pião. Eram os tempos do "salta e pilha", muitas vezes com a conivência das autoridades, o que não evitava contudo que muitos fossem presos e interrogados. Na Barroca, traziam-se as pedras extraídas para junto do Zêzere e partiam-se nesta rocha para se obter delas o minério precioso. As marcas ainda lá permanecem como recordação.



Na margem esquerda, curiosamente no local exactamente oposto às gravuras das 4 primeiras fotos, encontram-se outras gravuras, estas de motivos mais abstractos e de origem mais recente. Datando de um período compreendido entre o 3º e o 2º milénios a.C., portanto já em pleno Neolítico ao contrário das anteriores que são do Paleolítico, estas gravuras representam círculos e formas ovaladas concêntricos assim como aglomerações de picotado, num total de 23 desenhos. Nesta foto é visível uma forma ovalada contendo dois círculos concêntricos no seu interior.




De grandes dimensões, esta gravura também representa uma forma ovalada com uma outra no seu interior, contendo esta última dois pequenos círculos geminados. Encontram-se nesta rocha muitas outras representações semelhantes, num total de 17 gravuras.


É curiosa a interpretação que é dada a este painel por um habitante que encontramos na nossa última visita diurna bastante longe destas gravuras. Tendo visto as gravuras durante o dia, este senhor apenas distinguiu 4 formas ovaladas ou circulares que, segundo ele, e após as ter desenhado numa laje de pavimento com um posicionamento bastante rigoroso, alegou que se tratavam na verdade da Terra, da Lua, do Sol e da Estrela da Manhã. Não deixou de ser interessante esta interpretação até porque, vindo de alguém que não está muito dentro do assunto e ainda não havendo consenso sobre o que significariam estas gravuras, uma das hipóteses que são actualmente avançadas é de que elas poderão representar corpos celestes.

Bibliografia:
BAPTISTA, António Martinho, "Arte Paleolítica de Ar Livre no Rio Zêzere (Barroca, Fundão)", Revista EBVROBRIGA, nº1 Primavera-Verão 2004, p9-16.

Obrigatório ver:
Artigo COISAS do passado, do Blog COISAS da COISA, com fotografias diurnas dos painéis dos cavalos, caprídeos e do painel das duas últimas fotos, com animações para auxiliar a interpretação.

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