Gil Vicente morou no Fundão? Conclusão

Como estarão recordados, levantei aqui esta questão a partir da descoberta, nos arquivos do Jornal do Fundão, de um artigo, datado de 1976 e assinado por José Hermano Saraiva, no qual o autor defendia a possibilidade de Gil Vicente ter estado desterrado no Convento de Nossa Senhora do Seixo entre 1533 e 1536.




Esta tese é defendida por Hermano Saraiva em termos de possibilidade credível pelos dados de que então dispunha e que eram:

- A linguagem tipicamente beirã empregue nas obras de Gil Vicente

- As referências ao Fundão nas obras de Gil Vicente a partir de 1536

- A interpretação que Hermano Saraiva faz da mensagem das obras do autor nesse período, parecendo-lhe descrições "camufladas" daquilo por que Gil Vicente passou no seu degredo

- O facto de Gil Vicente, a ter sido efectivamente julgado por heresia, o seu julgamento ter sido conduzido por Frei Diogo da Silva, supostamente o primeiro inquisidor-mor de Portugal, homem de invulgar brandura e, como tal, residindo aí a explicação para a substituição da pena de morte na fogueira por uma pena de desterro/reclusão num convento. Uma pena deste género explicaria o desaparecimento do dramaturgo da cena pública entre 1533 e 1536.

- O facto de Frei Diogo da Silva ser natural de Aldeia Nova do Cabo ou Aldeia de Joanes, junto ao Fundão, e de ser também o fundador do Convento de Nossa Senhora do Seixo.



Novos dados


O actual director do Museu Municipal Arqueológico do Fundão, João Mendes Rosa, no seu livro intitulado O Convento de Nossa Senhora do Seixo do Fundão na História, na Lenda e na Literatura, refere alguns factos importantes para este debate, chegando a conclusões interessantes.

Assim, Mendes Rosa confirma a realização da peça que teria despoletado toda a polémica de acusação de Luteranismo em relação a Gil Vicente, assim como a denúncia da mesma em carta dirigida ao Papa. O que não existem são quaisquer documentos sobre o famigerado processo de acusação a Gil Vicente, nem sequer referências a um julgamento e, como tal, em relação à setença que daí poderia ter advindo.

Por outro lado, Mendes Rosa avança com uma proposta interessante: em 1531 a Coroa Portuguesa negociava com Roma a instalação do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, em Portugal. Perante o desconforto e embaraço que a presença de Gil Vicente na Corte poderia causar aos olhos da igreja, poderá ter-lhe sido pedido que se retirasse até à conclusão do processo. Seria esta uma tese mais cabível, segundo Mendes Rosa, que supor que o superprotegido Gil Vicente, admirado por D.Manuel e por D.João III, fosse, de um momento para o outro, castigado por desterro e reclusão. Da mesma forma, poderia ter sido pedida ao dramaturgo alguma contenção nos seus "ataques" à Igreja, derivando daí a subita amenização desse aspecto na sua obra mais tardia Floresta de Enganos.

Outro dado importante é avançado partindo da quadra do Auto da Festa na qual uma personagem, João Antão, afirma:

Eu são de cima da Beyra
Lá de junto do Fundão
Venho com hua appellação
Bofás com farta canseira


e mais á frente:

Meo pay naceo no Fundão

Ainda mais à frente, quando este João Antão é interpelado por Rascão, que o incita a casar, este responde:

Olhay filho eu vos direy
Já me a mím mandou rogar
Muitas vezes Gil Vicente
Que faz os autos a El-Rey.


Estes indício poderiam fazer pensar que Gil Vicente, explicitamente mencionado no texto na 3ª pessoa, estaria através de João Antão a solicitar uma qualquer apelação ao rei que, no contexto de um julgamento, se trataria de um pedido de intervenção real no seu processo.



Houve outro Gil Vicente no Fundão?

Contudo, Mendes Rosa descobre também um documento interessantíssimo. Trata-se de uma carta de indulto, datada de 1443, emitida por D.Pedro e dirigida a um tal de... Gil Vicente, arguido num processo de adultério, na sequência de um apelo deste. Este Gil Vicente era morador no termo da Covilhã, ou seja, não se sabendo a sua morada exacta no então território da Covilhã, poderia muito bem ser residente do Fundão visto que esta vila fazia então parte desse mesmo território. Não seria decerto o Gil Vicente dramaturgo visto que o documento data de 1443 e, como já foi referido no post anterior, o "nosso" Gil Vicente só terá nascido em 1465.

Assim sendo, Gil Vicente, o dramaturgo, poderia ter sabido da existência deste seu homónimo e, por achar piada à coincidência de nomes (quem não acharia?), teria aproveitado este episódio para o Auto da Festa, não sendo por isso necessariamente ele quem era natural do Fundão. Outra explicação poderá ser que o Gil Vicente de 1465 seja um membro desta família Vicente, e tenha relação com o adúltero Gil Vicente referido no documento, contando assim a história do seu familiar.



Frei Diogo da Silva não foi inquisidor!

E quanto a Frei Diogo da Silva, suposto 1º inquisidor-mor na altura em causa? Trata-se sem dúvida de uma figura fascinante, nascida em 1485 em Aldeia Nova do Cabo/Aldeia de Joanes. Foi confessor de D.João III, Bispo de Ceuta, Arcebispo de Braga e fundador do Convento de N. Sra do Seixo no Fundão.

Figura de destaque da sociedade e da Igreja portuguesas do séc XVI, foi de facto nomeado Inquisidor-Mor pelo Papa Clemente VII em 1531 e, aqui, reside o busílis da questão: Frei Diogo da Silva recusa a nomeação! O Papa reforça em 1532 a sua nomeação, intimando Frei Diogo da Silva a aceitar o cargo. Contudo, este, mais uma vez recusa-o.

Os motivos desta recusa não são muito claros mas é de crer que a sua excessiva brandura e bonomia fizessem com que não visse as tarefas implícitas ao cargo de Inquisidor-Mor com bons olhos.

Sendo assim, Frei Diogo da Silva nunca poderia ter julgado Gil Vicente, caso esse julgamento tivesse acontecido.



Em que ficamos afinal?

Não há provas que atestem a existência do julgamento de Gil Vicente, nem sequer que este tenha efectivamente estado no Convento de N. Sra do Seixo. Contudo, nada do que Mendes Rosa refere invalida, como ele próprio afirma, a que Gil Vicente efectivamente aqui tenha estado.

Admitindo que ele seja mesmo natural do Fundão, afinal havia por estes lados uma família Vicente que Gil Vicente, pelo menos, conhecia (podendo mesmo pertencer a ela), não será descabido supôr que este, tendo de adoptar uma vivência mais discreta afastando-se da Corte, tivesse optado por ir para um sítio que lhe inspirasse confiança: a sua terra natal. Numa perspectiva de castigo, auto-imposto ou não, poderia nesse caso ter optado pelo Convento em causa.

Até que se revelem novos dados, Gil Vicente irá permanecer na História de Portugal como uma figura tão cintilante quanto misteriosa, independentemente de ser Barcelense, Vimaranense, Lisboeta ou Fundanense.

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