E se o Infante D.Henrique não for o Infante D.Henrique?

Como um estudo publicado há 3 anos põe em causa todas as estátuas e quadros do Infante D. Henrique ao revelar um equívoco com quase 200 anos.

Quando ouvimos falar no Infante D.Henrique, vem-nos logo à cabeça a imagem de um homem de bigode com ar sisudo, vestindo vestes sombrias e com o penteado peculiar encoberto por um  largo chapeirão. É assim que é representado em estátuas, quadros e fotografias de estátuas e de quadros que se encontram um pouco por toda a parte, inclusive no próprio Padrão dos Descobrimentos.
Esta representação foi amplificada em 1960 em pleno Estado Novo, foi amplificada no decurso das comemorações henriquinas, tendo-se-lhe adicionado o mito da "Escola de Sagres". Esta figuração foi também depois identificada nos famosos Painéis de São Vicente, redescobertos em 1882.

Este rol de representações apoia-se numa iluminura inserida no Códice das Crónicas do Feitos da Guiné, feito em 1453 pelo cronista Gomes Eanes de Zurara, que foi descoberto em 1837 na Biblioteca Nacional de Paris, inserida na 5ª página e tendo por baixo a divisa do Infante "Talant de bie faire" e, na 6ª página, uma segunda iluminura contém uma representação da cruz da Ordem de Cristo.

Ora, segundo um estudo recente realizado por Fernando Branco* podemos ter estado enganados por quase 200 anos já que, segundo o autor, a figura do chapeirão seria na verdade não o Infante D.Henrique mas sim um familiar seu que também esteve ligado à gesta marítima portuguesa. Vamos por partes.

* Professor do IST, membro honorário da Academia Portuguesa de História e membro CIJVSCentro de Investigação Prof. Dr. Joaquim Veríssimo Serrão

O Infante D.Henrique

O Infante nasceu no Porto na Quarta-feira de cinzas de 1394, filho de D.João I e de Dª Filipa de Lencastre (Lancaster, Inglaterra) casal que fundou a dinastia de Avis que haveria de durar até 1580. Fez parte da Ínclita Geração em que se incluíam D.Duarte (futuro rei de Portugal). D.Pedro, Dª Isabel (que por casamento se tornaria Duquesa de Borgonha), D.João (avô do futuro rei D.Manuel I) e D. Fernando (que morreu prisioneiro em Tânger).

Tornou-se Mestre da Ordem de Cristo em 1420 até à sua morte e cavaleiro da inglesa Ordem da Jarreteira, de que os seus pais eram também membros. 

Foi Duque de Viseu e Senhor da Covilhã, tendo ficado na nossa história pelo seu papel de impulsionador da expansão ultra-marítima portuguesa que começou com a conquista de Ceuta em 1415, de que foi um dos principais incitadores junto do rei. Aquando da sua morte, os navegadores portugueses tinham já chegado ao arquipélago de Cabo Verde.

Morreu em Sagres a 1460 e encontra-se sepultado no mosteiro da Batalha.

A iluminura do Códice de Paris.

A representação em causa no Códice de Paris. Fonte: SOL

Ao analisar as iluminuras, Fernando Branco alega ter descoberto várias inconsistências que lhe sugerem que estas duas folhas haviam sido inseridas no Códice à posteriori e que a própria legenda por baixo do rosto havia sido adulterada para se tornar a divisa do Infante D.Henrique. A divisa do Infante D.Henrique era, como referido atrás, "Talant de bien fere" mas no documento aparece com uma grafia estranha que só passaria a usar-se em França no século XVI. Por outro lado, a divisa do Infante surgia geralmente num corpo formado por carrasqueiro e o corpo das iluminuras sugere, segundo Fernando Branco, outra árvore, a azinheira.

Ainda olhando para a legenda, algumas palavras parecem ter sido "apertadas" no espaço disponível, certos espaços repintados e, por outro lado, o "D" aparece anormalmente decorado, algo que seria de esperar apenas na primeira letra de uma frase. Descartando as alterações e considerando o "D" como primeira letra, será fácil, segundo o autor, obter a palavras "Desir". Ora, "Desir" em corpo de azinheira é a divisa de D.Pedro e não de D.Henrique, tese que surge reforçada por comparação com elementos presentes nos respectivos túmulos.

Também a cruz de Cristo presente na página seguinte é representada num estilo que só começou a ser usado no reinado de D.Manuel (1495 - 1521). Em 1453, a forma da cruz da Ordem de Cristo era diferente e isso também é visível no próprio túmulo do Infante D.Henrique.

Pormenor do túmulo do Infante D.Henrique. Fonte: Arquivo C.M.Porto

O homem de roxo dos Painéis de São Vicente

Os painéis de São Vicente de Fora são uma obra-prima da pintura portuguesa da autoria de Nuno Gonçalves e terão sido realizados na década de 1440, durante a regência de D.Pedro (1439-1446). Desde o anúncio da sua descoberta a identidade das personagens nele representadas tem sido alvo de acesa discussão mas é consensual que se trata de uma representação das figuras proeminentes da sociedade portuguesa de então.

Nos painéis a atenção de Fernando Branco centrou-se na tradicional figura do chapeirão e numa outra personagem vestida de roxo que se encontra ajoelhada. Este último apresenta um cinto colocado à moda da Ordem da Jarreteira e, ao pescoço, tem a Cruz de Cristo na forma como seria representada no tempo do Infante D.Henrique. A sua fisionomia será também coincidente com a estátua funerária do túmulo do Infante, pelo que Fernando Branco não teve dúvidas em apontar este como sendo o Infante D.Henrique.

Já a figura do chapeirão, uma moda de trajar tipicamente Borgonhesa, Fernando Branco reforça a sua convicção de que se trata de D.Pedro, homem culto e viajado que passou largo tempo na corte do Ducado de Borgonha tratando do casamento da sua irmã com o Duque Filipe o Bom. Assim, o autor dos painéis teria tido a intenção de representar as figuras com elementos que permitissem a sua mais fácil identificação.

Da esquerda para a direita: possível Infante D.Henrique, possíveis D.Pedro e D.Afonso V (nos painéis de São Vicente) e Filipe o Bom com o colar da Ordem do Tosão de Ouro, criada para comemorar o seu casamento com Isabel de Portugal (pintura no Museu de Belas Artes de Dijon). Fonte: Wikipédia

Mais ainda, a análise por infra-vermelhos revela novos detalhes sobre estas duas personagens dos painéis: inicialmente, o homem de roxo foi pintado vestindo uma armadura (condizente com o fulgor militar de D.Henrique e com demais representações deste) enquanto o homem do chapeirão tinha a sua mão sobre o ombro do jovem que está a seu lado. Sendo D.Pedro, o jovem poderia ser o futuro rei D.Afonso V, de quem o primeiro foi regente até o último chegar à maioridade. No processo, a anterior boa relação de ambos degenerou numa guerra aberta que culminou na batalha de Alfarrobeira onde D.Pedro encontrou a morte. 

A apresentação desta tese pode ser encontrada no Youtube:



Outras teorias

A identificação de D.Henrique com o homem do chapeirão vem sendo alvo de aceso debate desde há muito e outras teses indicam que se tratará nem de D.Pedro nem de D.Henrique mas sim de outro irmão, D. Duarte que foi rei de Portugal.

O debate promete prolongar-se. Afinal, estamos a falar de uma figura extremamente relevante da nossa história e para além de estar em causa o apuramento da verdade histórica, este assunto mexe com uma ideia enraizada e elevada à categoria de mito nacional há mais de 80 anos.

Como diz o próprio Fernando Branco, trata-se aqui de um exercício de busca da  verdade e o que é certo é que o debate promete ser apaixonante.


Vale a pena ler:

O estudo de Fernando Branco

Palestra de Fernando Branco

133 Assembleia de Investigadores - YouTube 

Contraditório

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Comentários

São Rosas disse…
Queimas-me os neurónios, Katano!