O "não" à Eutanásia e a legitimidade que nos assiste

A discussão durante os últimos dias foi intensa e ontem, finalmente, a proposta de despenalização da eutanásia, ou melhor, as 4 propostas foram a votos na Assembleia da República, sendo que a proposta do PS foi reprovada por apenas 5 votos. Este resultado acaba por ser surpreendente, especialmente tendo em conta a posição do Partido Comunista que votou contra.

Resultado da votação para cada proposta (o documento de cada proposta está disponível no link):

PAN (link) 102 a favor, 116 contra, 11 abstenções
PS (link) 110 a favor, 115 contra, 4 abstenções
BE (link) 104 a favor, 117 contra, 8 abstenções
PEV (link) 104 a favor, 117 contra, 8 abstenções

Dizem aqueles que eram contra a despenalização, que este resultado mostra que a sociedade portuguesa não quer a eutanásia. É uma completa falácia. A sociedade portuguesa está representada no parlamento por interposta pessoa e, nesta matéria em particular, aquilo a que se assistiu foi a uma expressão das convicções morais pessoais de cada deputado, quando lhes foi dada essa liberdade pelos seus partidos pois, de outro modo, valeu a vontade dos partidos. 

Para a sociedade portuguesa ser ouvida, esta questão deveria ter sido referendada mas, como li algures, “a sociedade portuguesa ainda não tem maturidade para discutir este tipo de questões”. Esclarecedor e contraditório. Portanto, 

Fiquei triste por este resultado pois assumo-me como sendo a favor da eutanásia e do suicídio medicamente assistido, que são práticas diferentes com o mesmo objectivo de antecipar a morte. No entanto, também defendo que o Estado não se pode nunca demitir da sua função social e é da sua responsabilidade fazer com que o desespero e o sofrimento possam ser atenuados de tal forma que o recurso à antecipação da morte seja uma via o menos desejável possível. Isso passa por uma aposta clara no reforço dos cuidados paliativos, algo que até agora não tem acontecido. Aliás - suprema ironia! -, muitos dos que agora exigem o reforço nesta vertente de cuidados hospitalares, são os mesmos que, há uns tempos atrás, promoveram cortes drásticos no financiamento do nosso sistema de saúde. 

Há também muito para dizer sobre as campanhas e discussões que se desenrolaram até ao dia de ontem. Quer-me parecer que muita gente não percebeu exactamente o que estava em causa nem compreendeu o que era isto da eutanásia. Parecia haver pessoas convencidas de que, com a aprovação da eutanásia, se iria assistir ao abater sistemático de doentes pelo país fora ou, no mínimo, que esta iria passar a ser uma prática médica do quotidiano das unidades de saúde. 

Isto também terá sido promovido pelo tom e argumentos de certas campanhas que pareciam apostar claramente na propagação do medo e da desinformação em proveito daquilo que defendiam, o que aliás é uma prática recorrente. Frases como “A eutanásia mata!” acompanhada de uma imagem lúgubre e “Por favor não matem os velhinhos” no cartaz de uma das pessoas que ontem se manifestaram diante do Parlamento, são claros indicadores do nível de esclarecimento que foi promovido.


Exemplo de campanha falaciosa e de desonestidade intelectual. A mensagem que se procura passar é que a eutanásia pode vir a ser uma imposição que não depende da vontade expressa de cada um. Lutar contra a eutanásia torna-se pois uma luta pela própria sobrevivência. 


Houve até uma subtil campanha que traçou um paralelo entre esta eutanásia e o abate de animais em canis, como se estas realidades pudessem sequer ser comparáveis. 

Clamou-se pelo respeito pela vida, alegou-se que toda a vida é sagrada, que tirar vidas é errado. Desconsiderou-se algo que estava aqui em causa que era o direito a uma morte digna e o respeito por uma decisão pessoal que apenas diz respeito a quem a toma.

Tentemos colocar-nos na pele de alguém que, acamado e totalmente dependente, sofre de uma doença incurável e com sintomas que se traduzem num sofrimento contínuo que lhe condiciona totalmente toda e qualquer interacção com o mundo ao seu redor. Vai definhando aos poucos, nesta lenta agonia, sob o olhar da sua família que irá guardar esta visão como a última recordação do seu ente querido.

O desespero e o sofrimento, que nada consegue atenuar, são tais que o alívio da morte se afigura como a única solução viável para lhe pôr cobro. A pessoa não quer sofrer mais e não quer que a família partilhe do seu sofrimento. Pede para morrer, para partir com tranquilidade e com dignidade.

Que moralidade tenho eu, que nem tenho ideia do que ele sofre, para lhe vedar essa opção? Que legitimidade tenho eu para lhe dizer Não, meu caro. Eu acho que todas as vidas são sagradas e toda as vidas devem ser salvaguardadas por isso aguenta e continua a sofrer. A tua dignidade está salvaguardada pela recordação que os teus familiares têm de como tu eras antes de ficares nesse estado. Não gosto de te ver sofrer mas não tens outro remédio. Agora fica aí e aguenta-te enquanto eu vou lá para fora ver as montas, beber copos com os amigos e viver a minha vidinha tranquilamente. Ainda por cima não tenho de suportar a visão de ti nesse estado.

Outra pergunta que eu faço é se alguém se deu sequer ao trabalho de ler as propostas de lei ou se se limitaram a ler os títulos das notícias partilhadas com frases fortes nas redes sociais. O passado recente faz-me suspeitar que se tratou sobretudo do 2º caso.

Ora, o que as propostas de lei diziam é que a eutanásia teria de ser uma decisão do próprio e que essa decisão teria de ser consciente, isto é, teria de ser uma decisão actual, séria, livre e esclarecida:


Por outro lado, a aceitação do pedido teria de seguir um processo de avaliação clínica implicando o parecer de um médico orientar, de um especialista na doença de que padeceria o doente e no parecer de um especialista em psiquiatria. Se todos os pareceres fossem positivos, então o processo seguiria para uma Comissão de Verificação e Avaliação a quem caberia depois a decisão final.

Poderá haver ainda alterações a fazer mas este modelo, parece-me, impediria decisões e acções tomadas com demasiada ligeireza. Por outro lado, havendo já países em que a eutanásia é legal, é sempre possível analisar essas realidades de forma a avaliar e corrigir as suas fragilidades.

Para já, a eutanásia foi colocada na gaveta, provavelmente até às próximas eleições legislativas de 2019. O ardor do debate sobre este tema vai também diluir-se, assim como a vontade manifestada por inúmeros cidadãos e grupos políticos em reforçar o investimento em cuidados paliativos como alternativa moralmente correcta à eutanásia.

Por enquanto, resta aos doentes em sofrimento aguentar-se, à espera que lhes proporcionem uma solução que resolva o seu sofrimento, seja ela qual for.

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