No Trilho da Muralha de Adriano - Dia 4

Mapa do percurso
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Dia 4 - De Once Brewed a Walton (29km)

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A primeira coisa que fizemos ao acordar (depois do acto de vestir, obviamente), foi ir até ao refeitório tirar a barriga das misérias da noite anterior, com recurso a um bem servido prato de colesterol em forma de pequeno-almoço inglês! Já com o estômago aconchegado e tendo aguardado alguns minutos para este se adaptar a tamanha deglutição, pusemos novamente a mochila às costas e inicíámos a etapa do dia, rumo a Walton. Mal tivemos tempo para percorrer os primeiros metros quando novamente começou a chover! Já prevenidos, tínhamos saído já com os impermeáveis vestidos mas, felizmente, o tempo foi melhorando à medida que a manhã ia passando.

O desvio que havíamos feito dois dias antes até Corbridge teve como consequência uma alteração substancial de planos que resultou em não podermos visitar o sítio arqueológico e museu de Vindolandia, um dos fortes/povoações de rectaguarda da Muralha, no qual foi descoberto um conjunto de mais de 400 tabuínhas de correspondência para os soldados da fronteira. Seja como for, acredito que este será um motivo adicional bastante forte para voltarmos à região no futuro facto que faz com que a desilusão seja moderada. Agora vou repetir isto para mim próprio várias vezes até ficar convencido disso.

A primeira parte do percurso foi agradável. Novamente pelas ondulações dos "Crags" do Whin Sill, fomos caminhando ao longo da chamada Muralha de Clayton, o troço reconstruído por John Clayton e que se distingue da Muralha original pela vegetação de que está coberta. O primeiro ponto de interesse foi a chegada ao alto de Green Slack que, com apenas 345m de altura, é o ponto mais alto do percurso! 

Embora a meteorologia fosse pouco simpática, cruzámo-nos com vários caminheiros ao longo do Trilho. Entre eles encontrámos um casal, vindo em sentido contrário, que meteu conversa connosco. ficámos a saber que estavam a percorrer a "Pennine Way", um outro trilho nacional inglês, este com orientação Norte-Sul que, durante alguns dos seus 430 quilómetros(!!), se funde com o Trilho da Muralha de Adriano. Esta era já a quarta vez que o homem percorria esse trilho, estando a prever demorar agora 18 dias. Por falar em casais, durante esta etapa reencontrámos várias vezes os nossos amigos australianos, sempre com a mesma boa disposição.

A Muralha de Clayton ou a parte da Muralha de Adriano que foi reconstruída por John Clayton. Como se distingue? A Muralha de Clayton tem uma cobertura que lembra o penteado da Maria José Valério.



Uma pequena secção de muro feito sobre a linha da Muralha, usando pedra desta. O Crag seguinte já volta a ter Muralha a sério.


Aqui é perceptível a diferença entre esta secção de aparelho construtivo romano e a secção anterior reconstruída por John Clayton.

As Pedreiras

Nesta etapa passámos por várias antigas pedreiras romanas, então exploradas para construir o dispositivo da Muralha de Adriano, e duas pedreiras relativamente recentes que provocaram um tremendo impacto na paisagem: a pedreira de Cawfields e a de Walton. Em ambos os casos, a exploração desenfreada das pedreiras a partir do século XIX, nas quais se obtinham facilmente placas que era aplicadas ao pavimento das estradas, levou ao desaparecimento de "Crags" inteiros e, no processo, à perda irreparável de grandes troços da Muralha de Adriano.

Recentemente, os locais foram requalificados e transformados em zonas de lazer e repouso para os caminheiros, acabando por transformar aquilo que era um atentado numa mais-valia para o Trilho.


A chegada à antiga pedreira de Walton, encerrada na década de 1940, com o fortim de milha nº 42 em primeiro plano

O forte de Aesica (Grand Chesters)

Pouco depois da pedreira de Cawfields, chegámos ao forte de Aesica, situado em Grand Chesters. Sobre a parte Nordeste do forte foi construída uma grande quinta, tal como aconteceu com o forte de Vindobala pelo qual passámos no 2º dia da caminhada (recordar aqui). No entanto, ao contrário deste último e apesar de também ser um dos fortes menos escavados da Muralha e de ser um forte relativamente pequeno, há mais para ver aqui.

Parte da muralha do forte é bem visível e, no seu interior, encontra-se o arco da sala-forte do Principia (se não se lembrarem do que é, cliquem aqui) assim como uma pequena divisão no portão Sul onde se encontra um altar. Neste forte estiveram estacionados soldados de infantaria vindos de regiões que actualmente correspondem às Astúrias, Suíça e Bélgica.

Vista aérea do Forte de Aesica, com uma forma quase quadrada. Foi construído sobre parte do Vallum e apresenta a curiosidade de, na parte Oeste, ter quatro fossos sucessivos. Das duas uma: ou não havia muito para fazer por estas paragens e construir fossos era uma boa forma de manter os soldados ocupados e quentinhos ou os vizinhos do lado Oeste tinham muito mau feitio. Imagem Google Maps




O arco da sala-forte do Principia, o "banco" do forte.


O altar romano situado junto à porta Sul do Forte. É curioso que, não se sabendo a que deus é dedicado, seja ainda hoje objecto de depósito de oferendas por parte dos caminheiros.


O fóculo da ara, com as oferendas dos caminheiros. Aproveitámos para deixar também um pequeno contributo, fazendo ao mesmo tempo um câmbio a taxas subjectivas com duas moedas que não conhecíamos. Como o resto da viagem correu bem, partimos do princípio que a divindade não se sentiu lesada, o que é bom.

Momento de convívio com a guarnição da porta Oeste.

O fim dos "Crags" e o regresso ao trilho plano

Embora a passagem pelo forte de Aesica tenha sido feita num troço relativamente plano do trilho, pouco depois voltámos às elevações dos "Crags" na sua parte terminal. Não tardou muito para chegarmos à pedreira de Walltown, outra zona onde desapareceram "Crags" inteiros e, com eles partes da Muralha. Esta pedreira "reabilitada", que marca o fim do Whin Sill e do Parque Nacional de Northumberland, situa-se junto ao Museu do Exército Romano e ao ainda escondido forte de Magnis, locais que não visitámos por  acharmos que, ao contrário de Vindolandia, não acrescentariam muito à nossa experiência. Aproveitámos sim para fazer a pausa de almoço na cafetaria do parque de estacionamento. 

O fim da sucessão de elevações, o Whin Sill, que percorríamos desde o dia anterior, deixou-nos algo tristes mas, como viríamos a constatar depois, o dia tinha ainda algumas surpresas reservadas para nós. 


A última passagem entre os "Crags".


Mais uma pedreira que "trinchou" literalmente boa parte da elevação. A Muralha passava outrora sobre o espaço hoje vazio por cima da lagoa da foto.


O último troço da Muralha antes do fim do Whin Sill na pedreira de Walltown

Do castelo de Thirwall à ponte de Willowford

Após a pedreira de Walltown, o Pennine Way separou-se do Trilho da Muralha de Adriano rumo a Sul, reduzindo também com isso o número de caminheiros. O percurso passou a ser feito novamente entre quintas e, junto a um pequeno riacho, chegámos às ruínas do Castelo de Thirlwall, uma fortificação do século XII, construída com pedras da Muralha de Adriano, para proteger esta região contra os temíveis salteadores da fronteira. 


As ruínas do Castelo de Thirlwall. Diz a lenda que, num dos raides dos salteadores da fronteira, os criados do castelo esconderam nas suas fundações uma riquíssima mesa feita em ouro, que ainda hoje está por descobrir.


Secção do trilho após o Castelo de Thirlwall, não recomendável a caminheiros com alergia a pólens. Felizmente não era o nosso caso e pudemos soltar um "Ahhhh...!" não nasalado.


Tendo a Muralha de Adriano entretanto desaparecido a partir da pedreira, o percurso continua a ser feito ao longo do seu fosso que oferece imagens como esta. Aqui e ali, alguns coelhos, que fizeram as suas tocas nas bordas do fosso, olhavam-nos com curiosidade.



Na povoação de Gilsland, o Trilho faz uma passagem inusitada pela horta de uma das casas, cujo dono ali trabalhava arrancando algumas ervas daninhas.

A maior secção contínua da Muralha de Adriano

Logo após Gilsland, no topo da escadaria que atravessa um pequeno bosque, surgiu de forma surpreendente o Fortim de Milha nº 48 ou de Poltross Burn, mais um fortim extremamente bem conservado. O local era tão aprazível que fizemos uma pequena paragem para descansar e apreciar as ruínas. Retomando o caminho e tendo-nos encontrado com os nossos amigo australianos pela última vez no Trilho, iniciámos o percurso que seguiu ao lado da Muralha (em excelente estado) por cerca de uma milha (1,6km) até à ponte de Willowford, onde nos esperava um encontro improvável.


O Poltross Burn (Riacho de Poltross) Milecastle ou Milecastle nº48, um fortim de milha extremamente bem conservado e o único que ainda tem vestígios da escada de acesso à Muralha, para além de um forno. 



Na quinta de Willowford encontra-se uma das inscrições que identificavam o trabalho feito por cada centúria na construção da Muralha. Esta diz "CHO V / C G PILIPPI" que é como quem diz, "A centúria de Gellius Philippus, da V Cohorte (construiu isto)". 

A ponte de Willowford

A secção da Muralha que termina nos restos da ponte de Willowford é de cortar a respiração. Terminando junto ao rio Irthing, cujo curso entretanto desviou substancialmente, este troço da Muralha deixa de ter os seus alicerces mais largos, passando a ter uma espessura uniforme. 

Quanto à ponte, esta teve ao longo dos séculos de ocupação romana três configurações diferentes. Também era a partir desta ponte que, para Oeste, a Muralha deixava de ser de pedra para passar a ser feita de turfa e madeira. Só mais tarde a secção entre o Irthing e a costa Oeste passou também a ser em pedra. 


Sobre esta foto apetece resumir a descrição ao seguinte: é bonito!

Enquanto fotografávamos os restos da Ponte de Willowford, um homem vestido com uma t-shirt com o símbolo do Trilho da Muralha de Adriano aproximou-se e meteu conversa connosco. Tratava-se nem mais nem menos de Alan Whitworth, um homem cuja vida está ligada de forma indelével à Muralha de Adriano há mais de 15 anos. Tendo estado à frente da coordenação do centro de interpretação do Forte de Housesteads durante algum tempo, deu também o seu contributo na escavação, restauro e conservação da Muralha. Aliás, foi em trabalho de conservação que o encontrámos visto que estava a fazer uma das quatro rondas mensais que divide com a sua mulher, na secção da Muralha que lhe foi atribuída.

É também escritor, tendo publicado vários livros sobre História, nem todos sobre a Muralha (tem 19 títulos na Amazon), sendo que um dos últimos foi publicado após a descoberta de mais de uma centena de desenhos de James Coates, um homem que no final do século XIX percorreu a Muralha, retratando aquilo que viu. Alan percorreu a Muralha com os desenhos de Coates e conseguiu encontrar todos os locais neles retratados, compilando no livro as imagens de "antes e depois". 

A conversa estava a ser extremamente interessante mas, infelizmente, o tempo urgia dado que queríamos ainda chegar a tempo de visitar o forte próximo de Birdoswald, que fechava às 18h. Despedimo-nos mas não sem antes Alan nos ter dado algumas dicas sobre curiosidades a ver na muralha. -"Antes do forte, vão encontrar uma abertura de escoamento de água na Muralha. Dez passos depois, há um "X" gravado na rocha. Vejam o que está na Muralha, por cima desse ponto, aproximadamente à altura dos olhos.". 


Alan Whitworth, um homem com uma história de vida recente ligada à Muralha de Adriano. Um encontro que proporcionou uma conversa interessantíssima e que nos deu alguns conselhos sobre o que ver na Muralha.


Após atravessar a premiada ponte contemporânea pedonal sobre o Irthing, uma pequena subida levou-nos ao fortim de milha nº49 e a um troço de muralha com quase 500m de comprimento e em alguns locais com 2m de altura. Quase no final deste segmento, eis que encontrámos o X indicado por Alan Withworth!


Eis a bela obra de escultura de origem romana que se encontrava na Muralha. Uma representação estilizada de um órgão sexual masculino, capaz de fazer corar aquela nossa tia mais conservadora ou a Beatriz do Facebook! Este é um dos muitos exemplares que podem ser encontrados ao longo da Muralha de Adriano (como na ponte junto a Chollerford, lembram-se?).

O forte Banna (Birdoswald)

Último forte visitável digno desse nome (para Oeste há apenas mais um mas ainda por escavar e sem acesso, enquanto outros quatro já desapareceram), o forte Banna foi construído como forte de cavalaria quando a Muralha de Adriano era ainda aqui feita de turfa e madeira. Mais tarde, quando a Muralha em pedra foi construída, foi transformado em forte de infantaria. O forte continuou a ser ocupado após a partida dos romanos, tendo inclusive vestígios medievais, supondo-se que se tenha tornado um centro de poder da região, talvez exercido pelos descendentes dos soldados romanos que aqui ficaram.

A casa senhorial que hoje ali se encontra, datada do século XIX, veio substituir uma casa de quinta fortificada de época medieval, uma "bastle house" construída de forma a proporcionar defesa contra os salteadores de fronteira. Infelizmente para os moradores, ela acabou por ser incendiada durante um dos raides que sofreu.

Um dos últimos donos da casa, acolheu aqui vários antiquários e promoveu várias campanhas de escavações no forte. Gostava tanto deste local que até baptizou um filho com o nome de Oswald. 

O grande forte de Banna em Birdoswald. A vermelho indico a linha da Muralha de Adriano em pedra que veio substituir a cortina de turfa e madeira, representada a laranja. Imagem Google Maps



A quinta de Birdoswald que alberga actualmente o museu e centro de interpretação (onde vimos mais um belo bloco de pedra com um símbolo fálico gravado) para além de uma pousada da juventude.


Vista para a porta Sul do forte, guardada pela guarnição contemporânea habitual.


Vista parcial dos celeiros. Junto a eles encontra-se a basilica exercitatoria, um espaço coberto onde os soldados treinavam e que esta assinalada pela colocação simbólica de postes que eram golpeados pelas pesadas espadas de madeira de treino.



O canto Noroeste do Forte, junto à continuação da Muralha.

Até Walton, para além do fim da Muralha

Prosseguimos caminho, após o fecho do centro interpretativo, atravessando zonas nas quais eram reforçados os pedidos para se ter cuidado para não desgastar o terreno, dado que se estava a passar por cima de zonas não escavadas da Muralha. Um pouco antes de chegar à aldeia de Banks, encontrámos aquele que seria o último troço da Muralha de Adriano que veríamos no trilho, isto quando ainda faltavam duas etapas para o fim! Ainda veríamos alguns vestígios de Vallum e fosso mas o resto seria essencialmente para apreciar a belíssima paisagem da região. Entretanto, sem darmos por isso, tínhamos já saído da região de Northumberland e entrado na de Cumbria.


O caminho é por aqui! A sinalização ao longo do trilho, salvo apenas uma excepção, nunca deixou dúvidas.


Secção de Muralha e Torre de Banks. O último pedaço da Muralha de Adriano do Trilho para quem viaja para Oeste.


A partir de Banks, com mais ou menos tendinites, o percurso foi sempre feito por prados e entre quintas. Teve contudo alguns troços de alcatrão bastante perniciosos para o estado de saúde dos nossos pés.

Ao chegarmos a Walton, e enquanto eu me detinha para fotografar alguns pormenores, a Ana parou diante de um painel com informação local. Ora, se há coisa que aprendemos da nossa experiência britânica é que, parar olhando em volta com ar perdido ou parar consultando um mapa ou painel de informação é a garantia que em alguns segundos teremos um habitante local a oferecer-se para nos dar informações

Uma senhora que por ali passava, parou e perguntou logo se precisávamos de ajuda, ao que a Ana, para que a senhora não ficasse frustrada por ter parado por nada, lhe perguntou se a quinta de Sandysike (o local onde iríamos pernoitar) era de facto pela estrada que seguíamos. A senhora respondeu que sim, especificando que se encontrava a algumas centenas de metros apenas, arrancando em seguida para o centro de Walton.

Ainda não tínhamos caminhado 100 metros quando essa mesma senhora regressou no seu carro, parando ao nosso lado para confessar alguma incerteza "Pensei melhor e fiquei com algumas dúvidas mas não se preocupem. Eu vou à frente para ter a certeza!" e eis que arrancou à nossa frente, qual viatura batedora, para confirmar a presença da quinta. Mal fizemos a curva, deparámo-nos com o veículo a manobrar num beco sem saída um pouco apertado para dar meia volta, e a entrar de traseira num monte de silvas que se encontrava na berma do caminho. "Esperem aí que vou ali bater à porta desta casa para perguntar!", disse-nos, mas aí fomos inflexíveis e dissemos que não era necessário pois, se fosse preciso, nós próprios faríamos isso, agradecendo a sua enorme disponibilidade. "Eu só não quero que vocês se percam!", disse-nos antes de se despedir e desaparecer novamente rumo a Walton.

Pouco depois, chegámos à quinta Sandysike, instalando-nos nas camaratas onde, o diligente proprietário nos serviu um jantar bem regado que não poderia ter caído melhor.

 
Sai uma Shepherd's Pie, que é como quem diz um delicioso empadão, para a mesa nº1! Ao contrário da receita típica, as ervilhas foram servidas à parte e não dentro do empadão.


O dia estava fechado mas não sem antes que, no momento em que eu tentava perceber como funcionava o chuveiro (fiquei a saber que há sempre um sistema de cordel que deve ser puxado para ligar a iluminação e a maquineta que regula a temperatura da água), um outro caminheiro que entretanto chegara, não tivesse invadido a casa de banho que não estava trancada, gerando uma situação algo constrangedora para ambos. 

A seguir: Um aparato colocado estrategicamente para testar a nossa honestidade e a chegada a Carlisle!

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