O Fundão voltou a encorrer os espanhóis!

Na passada noite de 30 de Novembro para 1 Dezembro, a população do Fundão cumpriu novamente a tradição de sair em arruada pela zona antiga da cidade para "encorrer os espanhóis". Seguindo atrás da Banda Filarmónica de Peroviseu e cantando o Hino da Restauração, os participantes percorrem o mesmo percurso, ano após ano.

A concentração para a arruada faz-se pouco antes da meia-noite diante da Câmara Municipal do Fundão, ao redor do pelourinho. A temperatura que se faz normalmente sentir desaconselha a impaciência e os mais madrugadores têm normalmente de se abrigar na "Nanda" ou no "Verdinho" para um retemperador café ou uma encorajadora jeropiga.

O Pelourinho do Fundão bem guardado. Uma reconstrução do século XX do original demolido no século XIX, do qual apenas se guardou a parte terminal.

Com o bater das 12 badaladas que se despedem Novembro e acolhem o dia da Restauração, devidamente acompanhadas pelo contar em uníssono pelos presentes, acende-se a iluminação de Natal do Fundão (de há uns anos a esta parte reduzida à Praça do Município por força das circunstâncias económicas) e a banda começa a tocar o Hino da Restauração:

Portugueses celebremos
O dia da Redenção
Em que valentes guerreiros
Nos deram livre a Nação.

A Fé dos Campos de Ourique
Coragem deu e valor
Aos famosos de Quarenta
Que lutaram com ardor.

P'rá frente! P'rá frente!
Repetir saberemos 
As proezas portuguesas.

Avante! Avante!
É voz que soará triunfal.
Vá avante mocidade de Portugal!
Vá avante mocidade de Portugal!


Nem todos conhecem a letra mas, com alguma boa vontade e umas cábulas estrategicamente distribuídas, lá se forma um coro satisfatório que parte rumo às emblemáticas ruas antigas do Fundão. 

A iluminação natalícia da Câmara Municipal do Fundão

O pelourinho decorado a preceito


Pelo caminho, há quem se atreva a assistir à janela ao passar da comitiva. Com os devidos agasalhos, claro!

O percurso termina no ponto de partida. Nesta altura percebe-se, pela dimensão mais reduzida da comitiva que a determinação em "encorrer os espanhóis" por parte de alguns participantes foi vencida pelo frio. Os "sobreviventes" voltam a concentrar-se entre o pelourinho e a Câmara Municipal para, desta vez, ser tocado e cantado o Hino Nacional.

O regresso à Praça do Município I

O regresso à Praça do Município II

Nova concentração entre o pelourinho e a Câmara Municipal

Uma cidadã fundanense anónima fazendo questão de registar o momento para a posteridade...

Tudo a postos para cantar o Hino Nacional!

A arruada deste ano contou com a simpática presença de uma grupo de jovens espanhóis que, apesar da temática da arruada, não se coibiram de participar e de gritar um impertinente "Viva España!" no final. No fundo eles próprios gostariam por esta altura de poder "encorrer" alguns dos seus conterrâneos. 

Finalmente canta-se o Hino. O coro é algo desafinado mas o que conta é a alma com que se canta. Alguns monárquicos, uns mais a sério do que outros, com bandeira e tudo, fazem questão de aproveitar a ocasião para lembrar que ainda há quem sonhe com o regresso da Monarquia. Politiquices à parte, que a meu ver nada trariam de novo ao cidadão comum, há que saudar o fair play de quem, sendo monárquico, não se abstém de entoar a Portuguesa, o Hino "republicano" que substituiu o Hino da Carta em 1911.

A Portuguesa, versão 2012


Até Martim Calvo o "povoador" de meia espada parece espantado com tamanho fragor!


Qual é afinal a origem desta tradição?

A origem desta arruada perde-se na memória. Se perguntarmos a qualquer fundanense com mais idade, a resposta será invariavelmente "já o meu pai ou avô não se lembrava de quando começou". É possível que esta tradição remonte mesmo à época da Restauração, dados os antecedentes da união ibérica de 1580 a 1640.

Então, com a sorte do Reino a decidir-se no confronto entre os espanhóis e os leais a D.António,  prior do Crato, o Fundão aderiu à causa deste último que se mostrou simpático para as pretensões da povoação em separar-se do concelho da Covilhã e ser elevada a vila, formando com isso o seu próprio concelho. Aliás, o Fundão não esperou e, unilateralmente, declarou-se como vila!

Ora a 22 de Novembro de 1580, a pretexto da visita de um meirinho da Inquisição, vindo de Lisboa, que chamando um outro meirinho da Covilhã, quis prender os cristãos-novos do Fundão, a população sublevou-se sob o comando do Capitão Estêvão de Sampaio, vereador do Fundão na Covilhã, expulsando violentamente os meirinhos, em defesa dos "seus" cristãos-novos e aproveitando também para vincar ali a sua posição de autonomia. Foi Sol de pouca dura. Tanto o Santo Ofício como as próprias autoridades da Covilhã abateram-se mais tarde com mão de ferro sobre o Fundão, resultando em processos que duraram cerca de 2 anos.

Com a derrota do prior do Crato na batalha de Alcântara, esfumou-se também o sonho de autonomia fundanense que terá sem dúvida ganho novo alento com a Restauração de 1640. Seria preciso esperar até 1747 para finalmente cumprir o sonho de criação do Concelho do Fundão mas, sem dúvida, o fim do reinado dos "Filipes" em Portugal terá sido efusivamente celebrado como um sinal de mudança e de esperança no futuro desta aldeia que sonhava ser vila. Terá começado por essa época a realização da arruada? É uma hipótese, que vale o que vale.

Já no século XX, no cumprimento da tradição, os espanhóis que a arruada queria encorrer passaram a ser escritos entre aspas. Espanhóis eram todos aqueles que o povo queria ver bem longe, não podendo no entanto manifestá-lo abertamente. Mais que uma celebração, tornou-se uma declaração política pública camuflada.

Hoje, mais que nunca, ocorre-me uma série de "espanhóis" que bem gostaria de ver longe do país. Também me ocorre que já seria tempo de se homenagear um tal de Estêvão Sampaio, herói do Fundão, que me parece ser uma figura muito mais relevante que Martim Calvo. Não concordam, fundanenses?

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