No último artigo dedicado a Ponte de Lima fiz referência ao episódio conturbado da travessia do rio Lima pelos legionários romanos comandados por Décimo Júnio Bruto que, numa primeira instância, julgaram ser este o rio Lethes, o Rio do Esquecimento, recusando-se a atravessá-lo.
Lembrei-me depois que João Aguiar, no seu romance histórico "Uma Deusa na Bruma", faz uma descrição interessante do que terá sido este episódio. Aqui fica um excerto do texto:
Do alto do seu cavalo, Décimo Júnio Bruto passeou o olhar pelas fileiras. Aquelas expressões fechadas, duras, falavam por si - conhecia bem de mais os legionários para ter ilusões. Conhecia bem demais aquele silêncio. Crescera gradualmente à medida que se aproximavam do Límia e que se espalhava entre eles a superstição semeada pelos prisioneiros calaicos e pela gente que aceitara comprar a paz com tributo. Na véspera, os comandantes dos manípulos tinham-no avisado que os homens se recusariam a atravessar. Agora, a recusa batia-lhe na cara como uma bofetada.
(...)
Bruto endireitou o corpo. Acicatou o cavalo, conduziu-o até junto do signífero. Com um gesto brusco, arrancou-lhe das mãos a insígnia e dirigiu-se para o rio.
Silêncio, silêncio mortal. Só o chapinhar das patas do cavalo quando feriam a água. Não se apressou, deixou que os homens sofressem na expectativa.
Estava a meio do rio, vencera três quartos de distância, estava na margem direita do Límia.
Forçou o cavalo a dar meia volta, para encarar as legiões. Então, tomou um largo fôlego e ergueu a voz, treinada para se fazer ouvir no campo de batalha. Não fez um discurso. Simplesmente, começou a chamar os comandantes dos manípulos pelos seus nomes - tinha todos os seus nomes na memória, era um bom general.
No outro lado, os homens ouviram-no. Bruto não precisou de terminar a chamada; muito antes disso, uma formidável aclamação abafou a sua voz. As trompas soaram dando a ordem de marchar.
Os romanos atravessavam o rio.
in "Uma Deusa na Bruma" por João Aguiar
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