91 anos da Batalha de La Lys II
O Soldado Milhões

Aníbal Augusto Milhais, natural de Valongo (concelho de Murça) tinha 23 anos quando, naquela madrugada de 9 de Abril, o inferno se abateu sobre as linhas portuguesas dando início à batalha de La Lys (ver artigo anterior). A sua acção individual, à revelia das ordens directas que havia recebido, contribuiu para que se salvassem inúmeras vidas portuguesas e escocesas e para que, no regresso a casa, Aníbal Milhais se tornasse o único soldado raso a ser distinguido com a mais alta condecoração do país: A Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito.


O ataque alemão

Quando às 8h45m a infantaria avançou, a confusão estava instalada nas linhas portuguesas. O bombardeamento incessante de artilharia durante cerca de 4h, para além das inúmeras baixas, desmantelara todas as comunicações e instalara o completo caos. Foi por isso com relativa facilidade que os alemães tomaram a primeira linha de trincheiras defendida pelo que restava das tropas aí colocadas. 

Dada a ordem de retirada, as unidades de Reserva avançaram até à linha intermédia para cobrir a retirada portuguesa. Numa dessas unidades, o Batalhão de Infantaria nº15, servia o metralhador Augusto Milhais, integrado num pelotão que, por engano, foi parar ao reduto de Huit Maisons, uma zona completamente diferente da inicialmente planeada, e onde já se encontravam tropas escocesas. De imediato, as tropas foram distribuidas ao longo da linha do reduto, sendo instaladas duas guarnições de metralhadoras, uma delas comandada por Milhais. 

Por volta das 10h, no meio do nevoeiro, começaram a surgir as primeiras tropas alemãs que investiram contra as posições bem guarnecidas luso-escocesas que, durante 2h, resistiu ferozmente. Contudo, o major britânico que comandava aquele reduto, apercebeu-se que os alemães tentavam uma manobra de cerco e, de imediato, deu a ordem de retirada para uma nova posição a alguns quilómetros dali, até porque o reduto estava já a ser sobrevoado pela aviação alemã que dava instruções à artilharia para regular o seu fogo.

A retirada teve então início às 14h mas, para trás, ficou Augusto Milhais que, com os alemães a apenas 200m e apesar da ameça de ser levado a Conselho de Guerra, insistiu em ficar para cobrir a retirada.


A odisseia de Augusto Milhais

Sozinho perante as tropas alemãs, Augusto Milhais dispôs várias metralhadoras (e não apenas uma como reza a lenda) ao longo da linha para, correndo a cada uma delas, dar a ideia de que se encontrava ali um grupo de soldados e não um homem isolado. Por outro lado, o facto de o disparo das metralhadoras Lewis 7,77 - carinhosamente rebaptizada pelos portuguesas de Luisinha - ser difícil de detectar, aumentava ainda mais a confusão dos alemães.

Contudo, a cada vez maior proximidade dos alemães que, inclusive haviam tentado aproximar-se vestido com o uniforme de soldados portugueses mortos mas que haviam sido varridos a tiro de metralhadora, forçou a que Milhais tenha de abandonar a sua posição. Pegou então numa metralhadora e recolheu munições dos seus camaradas mortos e fugiu para a rectaguarda, através de uma paisagem cinzenta, cheia de crateras e pantanosa.

Sozinho, sem água e sem qualquer outro alimento a não ser um pacote de amêndoas de Páscoa que recebera da família, errou durante 4 dias pela zona de combate, recolhendo munições e mantimentos dos cadáveres que encontrava e escondendo-se dos alemães em ruínas, crateras e mesmo em carcaças de cavalos. Contudo, sempre que tinha oportunidade, usava a sua Luisinha para abater os alemães que lhe aparecessem à frente e foi dessa forma que acabou por salvar vários soldados escoceses de serem capturados.

Já no dia 13, salvou de afogamento um major escocês que fugira aos alemães e que se aventurara nas águas do rio Lys. É este major que lhe dá finalmente informações sobre onde se encontrava e qual a direcção que deveria tomar para se juntar novamente às suas tropas. Também neste dia, segundo uma das suas filhas, Milhais terá salvo uma criança dos escombros de uma casa.


O regresso

Quando, à beira da exaustão, conseguiu finalmente reunir-se às suas tropas, já a notícia da sua aventura ali chegara, levada pelas tropas escocesas que encontrara pelo caminho. Levado à presença do comandante do seu batalhão, o major João Ferreira do Amaral, Milhais confirmou a história e, segundo a lenda, terá sido então que o major o felicitou dizendo a frase que rebaptizou Milhais: "Chamas-te Milhais mas vales Milhões!".

Tenha sido por causa dessa frase ou, como era muito comum na época, por confusão de leitura ou escrita de documentos, a alcunha Milhões seria oficializada pelo decreto de 31 de Agosto de 1918 que conferiu a "Augusto Milhões" a distinção da Ordem da Torre e Espada. A confusão propagou-se depois aos próprios serviços do Registo Civil que atribuíram, na altura do registo, o apelido "Milhões" a alguns dos 13 filhos de Milhais.

Regressado à Pátria, ainda emigrou para o Brasil mas acabaria por regressar a Portugal onde, durante muitos anos, seria uma figura inevitável que o Estado faria questão de exibir em todas as paradas militares, fossem elas na Metrópole ou no Ultramar. Também como recompensa lhe foi prometido um tractor com arado mas, infelizmente para Milhais, ele nunca lhe seria entregue.

Viria a falecer em Valongo a 3 de Junho de 1970 com 75 anos, numa altura em que do Estado recebia cerca de 1.000 escudos mensais.

Para a História ficou o rosto e o nome de um dos últimos heróis militares de Portugal, um homem pequeno no tamanho mas com uma humildade e enorme sentido de dever que, até aos seus últimos anos evitou falar da sua experiência na Flandres. Quando entrevistado alguém o incentivou a contar a sua história com a desculpa que "Recordar é viver", Milhais limitou-se a responder "Como se podem viver coisas de morte sem morrermos um bocadinho?".


Legenda das Fotografias:
Foto 1 - Augusto Milhais, o Soldado Milhões
Foto 2 - Aspecto das linhas portuguesas na I Guerra Mundial
Foto 3 - A Metralhadora Lewis 7,77 - A Luisinha.
Foto 4 - A condecoração de Augusto "Milhões"
Foto 5 - Augusto Milhais e a sua neta Leonídia

Fotos obtidas em:

Fonte: 
"I Guerra Mundial - Portugal nas Trincheiras", Visão História, nº 4, Fevereiro de 2009, p 54-57

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