Memórias de Verdun - 100º aniversário do início da I Guerra Mundial

Numa altura em que se assinala o 100 aniversário do início da I Guerra Mundial, recordo a minha visita a Verdun, então palco de uma encarniçada batalha que durou 10 meses e vitimou quase 700.000 soldados mas que hoje enverga o epíteto de "Capital Mundial da Paz". Este é um túmulo colectivo gigantesco no qual estão sepultados não só soldados mas também povoações e os sonhos de várias gerações. 

A Batalha de Verdun

Uma aldeia de Verdun. Antes e depois.
A Batalha de Verdun é o paradigma da irracionalidade de quem decidiu e dirigiu a I Guerra Mundial. Quando a mobilização geral foi decretada em cada país à medida que as declarações de guerra se iam sucedendo, todos os soldados, comandantes e governantes estavam convencidos de terem a razão e a superioridade do seu lado e de que estariam de regresso a casa antes do Natal. Só que a guerra mudou, prolongou-se, tornou-se uma trituradora de corpos e em 1916 não se via o seu fim.

Usando a racionalidade dos números, o general alemão Falkenhein propôs um plano simples pela sua lógica: se os alemães tinham mais soldados que os franceses, então numa batalha de atrito, havendo igual número de baixas em ambos os lados, os vencedores seriam inevitavelmente os alemães. Escolheu-se o palco para pôr em prática este plano: seria Verdun, espinho cravado na frente de batalha e local sagrado do ideário nacional da França, como Guimarães o é para Portugal. 

A 21 de Fevereiro iniciou-se o ataque alemão com fogo concentrado de 1200 peças de artilharia sobre 10km das linhas francesas. Em 2 dias apenas, caíram sobre o estas mais de 2 milhões de projécteis! Decidido a não ceder, o general Pétain ordenou a resistência a todo o preço, celebrizando a frase "Não passarão!", isto apesar de fortalezas-chave da região terem sido tomadas, algumas delas sem resistência, tal era a desorganização.

Fazendo de Verdun um prelúdio de Estalinegrado, reforços foram sendo continuamente enviados para a linha da frente através da única via de comunicação que não tinha sido cortada pelos alemães, a estrada que receberia a partir daí o nome de "Via Sagrada". Um veículo com tropas a 14 segundos, segundo dizem.

10 meses depois, após inúmeros avanços e recuos, tinham sido restabelecidas de grosso modo as posições do início da batalha. Por nada, tinham morrido cerca de 350.000 franceses e 320.000 alemães e várias povoações tinham sido apagadas do mapa para sempre.

A necrópole e o ossário de Douaumont

Partindo de Douaumont, local dominado pela torre do Ossário, descobre-se a Necrópole Nacional, formada pelo grupo principal de sepulturas individuais e por outros grupos mais pequenos e memoriais que se encontram dispersos um pouco por todo o lado. A torre tem a forma de um projéctil de artilharia e à noite funciona como farol simbólico, sendo visível a muitos quilómetros de distância. Do seu topo domina-se o cenário do antigo campo de batalha

Ao todo e sem distinção de nacionalidades ou religiões encontram-se no ossário restos de cerca de 130.000 soldados recolhidos no campo de batalha até muito depois do fim da Guerra. Sepulturas individuais são mais de 16.000. É difícil explicar o peso que se sente especialmente neste local mas também em cada memorial ou sepultura que se descobre no silêncio da floresta que rodeia o local.

Vista do edifício principal do Ossário para lá do cemitério.


O edifício do Ossário, simbolizando a forma como os soldados franceses deram o peito às balas, formando a barreira que deteve os alemães.


Outra vista do cemitério


Outra ainda


Metade do cemitério vista do alto da torre do Ossário. Há 98 anos atrás todo este cenário era uma paisagem lunar, pintada em cinza e castanho e os bosques tinham desaparecido.

Uma volta pelas redondezas

Partindo do Ossário, sem nenhum objectivo concreto, caminhei pelos bosques dos arredores durante algumas horas. A primeira coisa que notei foi a irregularidade do terreno devido às marcas, já algo esmorecidas, do bombardeamento indiscriminado a que esta zona foi sujeita.
Marcas de crateras sobre uma fortificação subterrânea da qual se avista um respiradouro já bastante exposto.

No meio da vegetação, tropeça-se frequentemente em ferro e betão. É preciso ter em conta que esta era uma região fortificada e que o espaço entre os fortes principais estava preenchido com fortins, abrigos e trincheiras.

A fortificação de Thiaumont é bom um exemplo disso. Situada no ponto máximo do avanço alemão, esta fortificação mudou de mãos mais de 20 vezes antes de ser definitivamente reconquistada em Outubro de 1916. Já pouco sobrava da sua estrutura nessa altura.


Campânula de observação em aço da fortificação de Thiaumont, arrancada da sua base pelo impacto directo de um projéctil de artilharia. 


Outro aspecto da fortificação de Thiaumont, com dois monumentos em memória de soldados que aí perderam a vida.


Um abrigo de infantaria semi-enterrado mostra o resultado do impacto directo de um projéctil de artilharia. A espessa couraça de betão armado foi insuficiente para proteger os soldados que ali estavam abrigados.

Mais à frente um conjunto de 4 respiradouros chamou a minha atenção. Tratava-se do "Abrigo das 4 chaminés", destinado a acolher temporariamente feridos antes de serem enviados para a rectaguarda e a proporcionar abrigo e descanso aos soldados. Não chegou a ser conquistado pelos alemães, pelo menos não inteiramente já que a dada altura, os alemães conseguiram estabelecer uma posição sobre o abrigo que albergava no seu interior muitos soldados franceses.

Os relatos dão conta desse momento delicado. Tendo tomado posição sobre o abrigo, os alemães começaram a lançar granadas e gás pelos respiradouros e tentaram entrar pelas duas entradas do abrigo. Encurralados, os franceses acederam fogueiras sob as chaminés e junto das escadarias para tentar fazer sair o gás pela acção do ar quente e ripostaram com as suas espingardas e metralhadoras às investidas alemãs.

Nem todos tinham infelizmente máscaras de gás e aqueles que as tinham tiveram de ver os seus camaradas agonizar no chão frio das galerias. Os alemães acabaram por ser desalojados pela artilharia francesa que se encontrava no monte oposto e que, ao aperceber-se da situação, disparou sobre o abrigo.


Uma das quatro "chaminés"


Uma das duas entradas do abrigo flanqueadas por sua vez por duas casamatas


Embora o aspecto e os avisos de segurança fossem desencorajadores, a curiosidade foi mais forte e acabei por me aventurar no interior do abrigo


No interior a escuridão é total. Sem lanterna, avancei graças ao flash da máquina fotográfica.


As galerias onde se acumulavam os soldados franceses

O Forte de Douaumont

O forte de Douaumont antes e depois da batalha
Construído para, em conjunto com os fortes próximos de Vaux e Souville servir de ferrolho da região fortificada de Verdun, o caso do forte de Douaumont é bem a prova da desorganização do exército francês perante a ofensiva alemã de 1916, tendo sido tomado sem esforço 4 dias depois do início da ofensiva.

Perante o maciço ataque alemão, o forte que tinha capacidade para 800 homens encontrava-se apenas guarnecido com 60 que, sem conhecimento da situação operacional e sem qualquer comunicação com o restante dispositivo de defesa, se limitavam a disparar os poucos canhões sobre alvos pré-estabelecidos antes dos combates.

Um pequeno grupo de alemães que tinha conseguido escalar a escarpa e chegar ao fosso do forte, percebeu que não havia grande oposição e voltou atrás para chamar reforços. A pequena guarnição foi apanhada de surpresa e rendeu-se sem oposição. 

Em Outubro, o forte voltaria a mudar de mãos sem oferecer resistência quando, após um violento incêndio no seu interior provocados por projécteis de artilharia que tinham conseguido perfurar a sua espessa couraça, os poucos alemães que haviam ficado para trás foram surpreendidos por soldados marroquinos do exército francês e renderam-se por sua vez.


O corpo central do forte em 2007 


A torre eclipsante de canhão de 155mm.


Corredor de acesso ao interior do forte, com chicane de metralhadoras (os dois muros com abertura no centro)


Secção selada após uma explosão provocada por um lança-chamas. Atrás da parede ficaram sepultados quase 700 alemães mortos por essa explosão.

As aldeias "mortas pela França"

Outros monumentos existentes nas redondezas recordam que as vítimas da guerra não são apenas militares. No sector de Verdun a batalha apagou do mapa nada mais nada menos que 9 localidades, 6 das quais nunca voltariam a ser construídas em parte pela dimensão da destruição mas também pela poluição provocada pelas munições utilizadas e pelo risco de existência de projécteis por detonar (ver 1ª imagem deste artigo).

Visitei dois locais onde outrora tinham existido aldeias. A primeira foi Fleury-devant-Douaumont, aldeia que antes da batalha tinha mais de 422 habitantes e que no decurso desta mudou de mãos 16 vezes, tendo por isso ficado em completa ruína. Hoje o local consiste essencialmente numa floresta cujo solo, onde abundam vestígios de materiais de construção, é extremamente irregular devido às crateras resultantes dos constantes bombardeamentos. O único edifício que ali se encontra é a capela de Nossa Senhora da Europa e a povoação continua a ser sede de comuna e tem também um maire (presidente de Câmara), nomeado a título simbólico, embora não tenha qualquer habitante. 


Marco junto à estrada recorda a aldeia desaparecida de Fleury-devant-Douaumont. Este marco foi construído com recurso a restos das casas da aldeia.

No local onde outrora se situavam os principais edifícios da aldeia, encontram-se pequenos marcos a recordar esse facto, neste caso o edifício que servia de câmara municipal e escola. 

 Indicação da orientação da antiga Rua de São Nicolau. No solo irregular são visíveis os restos de materiais de construção daquilo que foi outrora a aldeia.



A outra aldeia que visitei foi a de Douaumont, situada em frente ao forte com o mesmo nome, cuja recordação se fez pela colocação de marcos com os nomes dos habitantes e respectivas profissões ao longo da estrada. Também os edifícios mais importantes e as fontes são evocadas nesta alameda de memórias.

Uma capela, único edifício actualmente existente no local, ergue-se para assinalar o local onde outrora existiu a igreja da aldeia e é aqui que anualmente, no 2º Domingo de Outubro, se realiza uma missa em memória dos caídos à qual assistem os descendentes dos antigos habitantes de Douaumont.


Entrada em Douaumont, outra "aldeia morta pela França"



A rua onde se recordam alguns dos seus 288 habitantes

Em memória do Sr. Théophile Lamorlette, tecelão de profissão.


A Trincheira das Baionetas, da lenda à realidade

A certa altura fui parar a um memorial invulgar, a Trincheira das Baionetas. Trata-se de uma estrutura em betão armado construída por iniciativa estado-unidense como memorial em honra dos soldados mortos na I Guerra Mundial neste local como refere a inscrição sobre a entrada.

"Em memória dos soldados franceses que dormem de pé com a espingarda na mão nesta trincheira, (pel)os seus irmãos da América"

Um panfleto que tinha recolhido num museu ali perto conta a história desta trincheira. Os soldados franceses estavam aqui prontos, com a espingarda na mão, para carregarem sobre os alemães quando um tiro certeiro de artilharia alemã os enterrou vivos, deixando apenas as baionetas expostas como marcas de uma sepultura imprevista.

Na verdade a história é muito menos heróica e situa-se num nível diferente de tragédia. Tratava-se afinal de uma vala comum na qual foram enterrados alguns soldados, tendo as espingardas sido usadas para marcar o local de enterramento de cada um deles. A evocação heróica e patriótica da valentia dos soldados franceses encarregou-se depois de dar um tom romântico à história.


As sepulturas da Trincheira das Baionetas. Estas últimas entretanto já desapareceram e apenas se vê a ponta da espingarda perto de cada cruz. Ao todos havia nesta vala 21 soldados. 14 foram trasladados para a necrópole de Douaumont.

O memorial não é só local de morte mas também de vida, tendo em conta a pequena colónia de morcegos que aqui encontrou as condições ideais para se abrigar.

Outros monumentos

Como referi, na região de Verdun abundam os locais de memória dos que tombaram durante a I Guerra Mundial. É claro que Verdun é um local emblemático pelo seu significado na construção da identidade francesa e por isso terá um valor simbólico acrescido mas também é importante referir que não faltam cemitérios e monumentos noutras paragens do Nordeste. Isto para não falar dos monumentos em honra dos mortos da I Guerra que existem em praticamente todas as localidades de França, com maior ou menor modéstia, aos quais foi depois acrescentada a referência aos mortos da II Guerra.

Dos memoriais que encontrei à volta do Ossário, eis os que me pareceram mais interessantes:


Monumento em memória dos 28.000 soldados muçulmanos mortos em combate, principalmente forças coloniais magrebinas e senegalesas. Construído em apenas 3 meses de 2006, foi no entanto necessário proceder previamente à desminagem do terreno. Nesse trabalho foram encontradas 219 munições (balas, obuses e granadas) assim como os restos mortais de um soldado cuja identidade (e religião) se desconhece.



Inaugurado em 1938, o memorial domina a secção do cemitério onde estão sepultados alguns dos muitos soldados judeus caídos no campo de batalha. Judeus e muçulmanos morreram e foram aqui sepultados de igual forma e não constam que se dêem mal.



Monumento a André Thome, deputado que abdicou da possibilidade de não ser incorporado conferida pelo seu estatuto de político para se voluntariar para a frente de combate. Morreu em Verdun a 10 de Março de 1916 com 36 anos de idade.



Monumento a André Maginot, deputado de Bar-le-Duc e ministro, que se alistou voluntariamente como soldado raso tendo sido ferido num joelho em combate. Como Ministro da Guerra, foi grande defensor da construção de uma fronteira fortificada com a Alemanha que viria a ser chamada de Linha Maginot. De pouco serviria durante a II Guerra Mundial (ver aqui artigo sobre a visita ao impressionante forte Hackenberg).


Um covilhanense morto em Verdun

Nos arquivos do Ministério da Defesa de França, é possível encontrar uma relação dos soldados mortos em Verdun. Entre eles encontram-se muitos portugueses mas um deles chamou-me a atenção. Trata-se de um tal de Jean Georges Haudecoeur, cabo do 165º Regimento de Infantaria, falecido no hospital militar de Verdun na sequência de ferimentos sofridos em combate 4 em Setembro de 1914, portanto logo nos primeiros combates da I Guerra. Curiosamente, embora tenha um nome francês, o registo de óbito aponta-o como tendo nascido em Portugal, mais precisamente em "Covilhan". 



Imagem aérea: Fórum AR15.com, Strange Military

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