O mistério do Bilhete de Identidade*

"O algarismo à frente do número do Bilhete de Identidade é o número de pessoas que existem em Portugal com um nome igual ao meu!"
por cidadão na completa ignorância

Na semana passada, numa discussão sobre bases de dados e enquanto eu referia o Bilhete de Identidade como exemplo de um registo numa bases de dados, um dos formandos defendeu a pés juntos que o algarismo suplementar, à frente do número do BI, correspondia ao número de pessoas existentes que possuíam o mesmo nome que ele. Este tipo de crendices, confesso, causa-me profunda impressão pela irracionalidade que encerram em si e pela forma como se enraízam na cultura urbana.

Não é necessário pensar muito para encontrar algumas inconsistências nessa tese. Por exemplo, será que ninguém acha estranho que o tal número de pessoas com o mesmo nome esteja sempre situado entre 0 e 9?

Seja como for, e para acabar de vez com esse mito, pelo menos no que aos assíduos leitores deste blog diz respeito, esperando que, por sua vez, passem a palavra a outros, claro, vou aqui sumariamente explicar o porquê desse algarismo suplementar.


Controlo de erros

Quando, no dia-a-dia, fornecemos o nosso número de BI, seja com que propósito for, a outra pessoa ou inclusive o digitamos nós próprios num qualquer formulário de registo, podem suceder erros involuntários: uma sequência 234 pode-se transformar em 243 por troca de dígitos ou ainda em 235 por erro na tecla que se prime (o 5 está ao lado do 4).

Assim, no intuito de evitar este tipo de situações, foi aplicado um sistema de verificação de erros que se traduz visualmente no algarismo suplementar. Mas como funciona?

Suponhamos que temos um número de BI (completamente ao acaso) com o valor 9922333, ao qual está associado o algarismo suplementar 3.

Para verificar se o número está correcto vamos efectuar alguns cálculos multiplicando, da direita para esquerda (começando no algarismo suplementar), cada algarismo pela sua posição na contagem, da seguinte forma:
Obtemos então 8 resultados diferentes: 72, 63, 12, 10, 12, 9, 6, 3.

Em seguida, somamos estes valores obtendo: 187

Para finalizar, dividimos este valor por 11 e se, como neste caso acontece, obtivermos resto 0 na divisão, então o número está correctamente escrito.

187 / 11 = 17, RESTO 0! -> O número está bem escrito


Porquê o número 11?

O facto de se usar o número 11 tem uma explicação. Quando se usa um algoritmo de verificação deste género, baseado em restos de divisão, este só irá funcionar se for usado um número primo, um número apenas divisível por si próprio e por 1, que esteja imediatamente a seguir à base de numeração usada. Assim como usamos a base numérica decimal, Base 10, o número primo imediatamente a seguir é 11.


A falha deste sistema

Contudo, o método usado nos BI tem um erro. Suponhamos os números de BI 6617080-0 e 6617085-0 e façamos as contas. Depressa se verificará que há aqui uma incongruência pois se no segundo as contas efectivamente dão resto 0, no primeiro isso já não acontece pois obtém-se... 1!

A justificação é simples: ao dividirmos qualquer número por 11, o resto da divisão pode ir de 0 a 10. Ora, como o sistema adoptado nos BI pressupõe o uso de um número de controlo de apenas 1 algarismo, se este número for 0, tanto poderá valer efectivamente 0 como 10!

Esta é uma falha que afecta quase 10% dos portugueses e que, ao contrário dos ISBN onde este problema foi solucionado pelo uso de letras (X=10), no caso dos nossos documentos de Identificação, tenha sido por preguiça ou por distracção (qual deles o mais grave), o erro persiste.



* Este é parte do título do livro "O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias" da autoria do matemático Jorge Buescu. Um livro interessantíssimo que aborda alguns do "mistérios" matemáticos do nosso quotidiano, entre eles o assunto deste artigo.

Para ver o artigo de Buescu na íntegra, clicar aqui.

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