Tuguices

Excertos do texto de Clara Ferreira Alves, hoje, na revista Única do Expresso:

"Esta é aquela altura do ano em que os portugueses dizem uns para os outros com ar circunspecto e circunstancial, ou melhor, com ar circunspecto ou circunstancial, vou aproveitar as férias para ler e escrever. Sobretudo ler, ler, tenho um monte de leituras para pôr em dia. (...) E é já a seguir, é mesmo já a seguir, vem a lista extensiva e exausta do monte de leituras para pôr em dia. Normalmente, um best-seller dqueles com o selo de autenticidade dos best-sellers aprovados pela weltanschauung contemporânea, vulgo zeitgeist, vulgo "uma cena da moda", normalmente, dizia eu, um desses livros género Dan Brown ou Thomas Harris (em inglês dans le texte e em paperback) e nunca, nunca, um desses livros do género Rebelo Pinto ou Paulo Coelho, que não correspondem ao cânone e são só lidos pelas classes inferiores que nunca, nunca, são suficientemente superiores ou cultas para responderem a inquéritos de Verão dos jornais ou terem amigos cultos que, nas férias, aquilo que fazem é essencialmente (e o advérbio é fundamental) ler e escrever, muito ler e escrever.
(...) Os portugueses mentem. Mentem com quantos dentes têm na boca. E dizem que vão ler. Que vão ler aquilo, aquelas coisas, o Homero traduzido em português dans le texte e misturado com a areia da praia, o Dan Brown em inglês dan le texte caído no bordo salpicado de cloro de piscina, e quiçá um pesado romance de século XIX, que andam para "reler" (outra mentira, mais fina, é a dos que deixaram de ler, apenas relêem) há anos, que pesa pelo menos 489 gramas e que eles tentarão equilibrar numa mão, enquanto seguram o toldo do vento e a trela do cão na outra.
Mentem e continuam a mentir, faz parte do sistema, está-lhes, como dizia o povo, na massa do sangue. Porque, se os portugueses lessem tanto como mentem, éramos o povo mais culto da Europa, quiçá do mundo inteiro, e não somos. Não somos não. Perguntem nas papelarias dos hipermercados, visto que não se pode chamar àquilo livrarias. Perguntem e apurem a qualidade das respostas. A verdade é que somos um dos povos mais incultos, iletrados e analfabetos da Europa, e não é por falta de livros ou de dinheiro, nem por causa do défice. Se há dinheiro para CD e T-Shirts da Zara, para telemóveis e carros, também haveria para livros, embora em se tratando de livros venha logo aquele queixume miserabilista do "livro tão caro", o que não impede os mesmos queixosos de, em férias, lerem e relerem, lerem e relerem.
Não. Se em Portugal, como me confidenciou um editor, se publica um livro de duas em duas horas, também não é por falta de livros, embora a maioria destes livros não valha a vida de um caracol a atravessar a A2 para o Algarve no dia 31 de Julho. Não. A razão pela qual somos um dos povos mais iletrados, incultos e ilegíveis da Europa é porque não lemos. " (...)

Comentários

David Caetano disse…
Eh pá... jornais desportivos não é leitura?